Não é possível exagerar a importância da batalha de Estalinegrado, entre 1942 e 1943. É nesta cidade que o 6º Exército Alemão, liderado por Friedrich von Paulus, encontra o 62º Exército Soviético de Vasily Chuikov numa batalha que chega a ter mais de um milhão de homens de cada lado. As perdas para ambos foram terríveis mas, no final, o mundo suspirou de alívio quando percebeu que Hitler tinha sido decisivamente batido pela primeira vez, e que a segunda guerra mundial tinha acabado de virar a favor dos aliados. Nenhuma outra batalha da segunda guerra mundial, não obstante o seu brilhantismo técnico, números envolvidos, genialidade das tácticas militares ou qualquer outro factor foi tão decisiva como esta. É em Stalingrado - hoje Volgogrado - que a guerra foi decidida e que Stalin se torna num dos mais poderosos homens do século XX.
É sempre um prazer ler Antony Beevor. Já aqui tinha revisto três livros deste autor (Segunda Guerra Mundial, A Queda de Berlim e Um Escritor na Guerra), todos relativos à guerra de 1939-1945 e aos quais praticamente só reservei elogios. Depois de ter detalhado tanto as qualidades deste autor e da sua obra, acho que só me resta dizer que "Stalingrad" é - de longe - o melhor de todos eles. Com o ritmo certo, enorme detalhe, mostra-nos a batalha de Estalinegrado nos vários níveis a que esta se move: entre a vontade férrea dos sanguinários Hitler e Stalin, dispostos a pagar com o sangue dos seus povos qualquer custo necessário para vencer esta batalha; na esfera do simbolismo, já que a cidade tinha o nome do ditador soviético o que leva ambos a sobrevalorizarem uma cidade já sem qualquer valor económico ou militar; das lembranças da gigantesca derrota napoleónica da Grand Armée de 1812 que perdera na invasão da Rússia quase meio milhão de soldados, obrigando o Imperador françês a regressar a Paris com apenas 27 mil soldados e a sua reputação decisivamente manchada; aos amedrontados civis apanhados no meio da mais horrorosa luta porta-a-porta; e aos pobres soldados de ambos os lados a lutar em condições miseráveis sem comida, água ou munições pelos esgotos e caves da cidade, de prédio em prédio até chegarem ao Rio Volga, no que ficou conhecida como a Rattenkrieg (por comparação à Blitzkrieg, guerra-relâmpago, os soldados alemães chamaram a este tipo de luta, "guerra dos ratos").
Não deixa de ser curioso que Hitler, que tanto esforço tinha feito para consegui tomar países sem entrar em guerras urbanas tenha caído no erro de tentar tomar os escombros de Stalingrado, quando já não existiam verdadeiros motivos militares ou económicos para o fazer. Nesta altura (Outono de 1942), Hitler colecionava capitais europeias e nenhuma delas tinha sido destruída ao ponto que se viu em Stalingrado. As grandes cidades de França, Bélgica e Holanda estavam em relativo bom estado e só no leste algumas das cidades (nomeadamente na Polónia) tinham sinais sérios de bombardeamento. Em Leningrad, as tropas alemãs limitaram-se a cercar a cidade e deixá-la a morrer à fome sem se darem ao trabalho de tentarem tomá-la completamente. Mas para o lado ocidental do Volga, Hitler decidira que queria a cidade até ao seu último prédio. Toda a sua produção industrial tinha sido arruinada ou movida para leste meses antes e o tráfego fluvial que permitia a ligação do Volga até ao Mar Cáspio (e daí para a ajuda material americana através do Irão) também estava bloqueada já que o 6º Exército chegara até ao rio em vários pontos. A hubris de Hitler e a sua incapacidade em ouvir qualquer conselho dos seus generais, assim como um estado-maior das forças armadas sem qualquer capacidade ou vontade de fazer frente à intervenção directa de Hitler nos detalhes da guerra tornaram toda a situação impossível e muito pouco flexível. São lições que não foram aprendidas nessa altura e que se voltariam a revelar trágicas mais tarde durante a resposta à invasão aliada na Normandia.
Em paralelo, em Moscovo, Stalin permitiu ao seu general estrela, Georgy Zhukov a preparação de uma grande ofensiva de inverno sobre Von Paulus. Ao contrário do que era seu hábito, Stalin não tentou interferir exageradamente e aceitou a necessidade de algo diferente da habitual táctica de carne-para-canhão, com que os alemães tinham sido recebidos. Até aí, centenas de milhares de tropas soviéticas, mal preparadas, mal armadas, muitas vezes sem armas suficientes para toda a gente, eram atiradas contra as linhas da frente em missões quase suicidas contra os exércitos do Eixo. Torna-se então comum a existência de uma segunda linha soviética que disparava contra os que procurassem voltar atrás e uma política de terror fora implementada contra aqueles que desertassem (as suas famílias eram perseguidas e os seus colegas próximos ou superiories hierárquicos responsabilizados pela deserção).
Depois das dificuldades do ano anterior, às portas de Moscovo, os alemães estavam à espera de uma ofensiva de inverno por parte dos russos. O que não contavam era com um movimento tão grande que cercasse a totalidade do seu exército de uma só vez. O azar calhou aos enormes, mas mal preparados exércitos Romenos que protegiam duas zonas cruciais da retaguarda, e do qual toda a logística dependia. Não obstante os oficiais romenos tenham avisado vezes sem conta das suas necessidades de armas anti-tanque, unidades blindadas e artilharia pesada, as suas forças foram na realidade ficando mais fracas à medida que mais recursos essenciais eram enviados para a Rattenkrieg.
Desta vez, Exército Vermelho prepararam-se como nunca tinham feito, juntando enormes números de soldados devidamente acompanhados da força aérea e dos modernos tanques T-34 (o seu design em curva tornava a sua blindagem muito superior a tanques do mesmo nível e as suas lagartas mais largas adaptava-se aos difíceis terrenos das estepes semi-congelada). Juntamente vinham também as unidades especializadas de atiradores furtivos, as super-estrelas do exército soviético e as tropas siberianas, com o seu equipamente camuflado branco e altamente treinadas para lutar no gelo e na neve.
No dia 19 de Novembro de 1942, inicia-se a operação Uranus, com um movimento a Norte e outro a Sudeste, com as forças a juntarem-se no rio Don (a leste do Volga), deixando os alemães e seus aliados sem capacidade de receber mantimentos, gasolina ou munições. Depois das irresponsáveis ordens para utilizar as tripulações de tanques em combates de infantaria urbanos, o exército alemão vê-se envolvido por um movimento em profundidade sem ter qualquer capacidade de resposta. Muita da sua artilharia pesada teve que ser abandonada já que as centenas de milhares de cavalos que os puxavam tinham sido levados mais para ocidente, para facilitar a logística da sua alimentação. Von Paulus mostra nessa altura a sua incapacidade. Não estava preparado para esta ofensiva. Não teve iniciativa para lhe responder adequadamente e limitou-se a fechar posições e esperar pelo futuro. A rápida actuação de Richthofen, da Luftwaffe, com os seus bombardeiros de precisão Stukas Ju-87 conseguiu dar alguma ajuda aos exércitos romenos mas foi pouco e demasiado tarde. O futuro do 6º Exército parecia estar selado.
Mas o futuro nada traria de bom. O inverno apanhou os exércitos nazis sem nada e mal posicionados. Cada dia que passava estavam mais subnutridos, mais doentes e mais desidratados (mesmo com os nevões, a inexistência de combustível de tipo nenhum faziam com que não tivessem água suficiente). A ponte aérea prometida por Goering era uma fantasia que nunca poderia resultar: das 700 toneladas diárias pedidas por Von Paulus, Goering considerou que apenas 300 seriam realmente necessárias. Mas, na realidade, nem nos melhores dias conseguiram cumprir isso, mesmo quando desviaram bombardeiros para as missões de transporte. As ajudas terrestres nunca chegaram - o General Manstein não conseguiu quebrar o cerco vindo do sul, onde o seu Grupo de Exércitos do Don se encontrava, e acabou por utilizar o tempo que lhe restava para mover os seus exércitos para noroeste, conseguindo escapar ao inevitável cerco que lhe seria feito assim que o 6º Exército se rendesse. Von Paulus nunca tentou quebrar o cerco com as suas forças e cumpriu a ordem de defender a sua posição até ao fim. De todas as ordens directas que Hitler lhe deu, apenas não fez uma: não se suicidou. Mesmo depois da última promoção a Generalfeldmarschall, a apenas uns dias da destruição total do seu exército, uma indicação clara de que nunca poderia ser apanhado vivo.
Stalingrado fica para a história como uma das maiores importantes batalhas da história e duvido seriamente que alguém, alguma vez, a contará melhor do que Antony Beevor. Depois de tamanho livro, não sei que mais esperar deste historiador inglês, mas será difícil voltar a estar ao mesmo nível. Talvez seja esta a única crítica a fazer a um livro perfeito: a esperança de voltar a encontrar outro do mesmo nível é mínima e nunca mais terei o prazer de ler este livro pela primeira vez. O que, obviamente, aconselho vivamente a todos os que me acompanham.
É sempre um prazer ler Antony Beevor. Já aqui tinha revisto três livros deste autor (Segunda Guerra Mundial, A Queda de Berlim e Um Escritor na Guerra), todos relativos à guerra de 1939-1945 e aos quais praticamente só reservei elogios. Depois de ter detalhado tanto as qualidades deste autor e da sua obra, acho que só me resta dizer que "Stalingrad" é - de longe - o melhor de todos eles. Com o ritmo certo, enorme detalhe, mostra-nos a batalha de Estalinegrado nos vários níveis a que esta se move: entre a vontade férrea dos sanguinários Hitler e Stalin, dispostos a pagar com o sangue dos seus povos qualquer custo necessário para vencer esta batalha; na esfera do simbolismo, já que a cidade tinha o nome do ditador soviético o que leva ambos a sobrevalorizarem uma cidade já sem qualquer valor económico ou militar; das lembranças da gigantesca derrota napoleónica da Grand Armée de 1812 que perdera na invasão da Rússia quase meio milhão de soldados, obrigando o Imperador françês a regressar a Paris com apenas 27 mil soldados e a sua reputação decisivamente manchada; aos amedrontados civis apanhados no meio da mais horrorosa luta porta-a-porta; e aos pobres soldados de ambos os lados a lutar em condições miseráveis sem comida, água ou munições pelos esgotos e caves da cidade, de prédio em prédio até chegarem ao Rio Volga, no que ficou conhecida como a Rattenkrieg (por comparação à Blitzkrieg, guerra-relâmpago, os soldados alemães chamaram a este tipo de luta, "guerra dos ratos").
Estalinegrado - luta pela fábrica "Outubro Vermelho" a apenas uma centenas de metros do rio Volga |
Em paralelo, em Moscovo, Stalin permitiu ao seu general estrela, Georgy Zhukov a preparação de uma grande ofensiva de inverno sobre Von Paulus. Ao contrário do que era seu hábito, Stalin não tentou interferir exageradamente e aceitou a necessidade de algo diferente da habitual táctica de carne-para-canhão, com que os alemães tinham sido recebidos. Até aí, centenas de milhares de tropas soviéticas, mal preparadas, mal armadas, muitas vezes sem armas suficientes para toda a gente, eram atiradas contra as linhas da frente em missões quase suicidas contra os exércitos do Eixo. Torna-se então comum a existência de uma segunda linha soviética que disparava contra os que procurassem voltar atrás e uma política de terror fora implementada contra aqueles que desertassem (as suas famílias eram perseguidas e os seus colegas próximos ou superiories hierárquicos responsabilizados pela deserção).
Ju-87 Stuka depois de uma ataque a Estalinegrado |
Desta vez, Exército Vermelho prepararam-se como nunca tinham feito, juntando enormes números de soldados devidamente acompanhados da força aérea e dos modernos tanques T-34 (o seu design em curva tornava a sua blindagem muito superior a tanques do mesmo nível e as suas lagartas mais largas adaptava-se aos difíceis terrenos das estepes semi-congelada). Juntamente vinham também as unidades especializadas de atiradores furtivos, as super-estrelas do exército soviético e as tropas siberianas, com o seu equipamente camuflado branco e altamente treinadas para lutar no gelo e na neve.
Operação Uranus |
No dia 19 de Novembro de 1942, inicia-se a operação Uranus, com um movimento a Norte e outro a Sudeste, com as forças a juntarem-se no rio Don (a leste do Volga), deixando os alemães e seus aliados sem capacidade de receber mantimentos, gasolina ou munições. Depois das irresponsáveis ordens para utilizar as tripulações de tanques em combates de infantaria urbanos, o exército alemão vê-se envolvido por um movimento em profundidade sem ter qualquer capacidade de resposta. Muita da sua artilharia pesada teve que ser abandonada já que as centenas de milhares de cavalos que os puxavam tinham sido levados mais para ocidente, para facilitar a logística da sua alimentação. Von Paulus mostra nessa altura a sua incapacidade. Não estava preparado para esta ofensiva. Não teve iniciativa para lhe responder adequadamente e limitou-se a fechar posições e esperar pelo futuro. A rápida actuação de Richthofen, da Luftwaffe, com os seus bombardeiros de precisão Stukas Ju-87 conseguiu dar alguma ajuda aos exércitos romenos mas foi pouco e demasiado tarde. O futuro do 6º Exército parecia estar selado.
Von Paulus (à direita) a ser interrogado pelo Gen. Rokossovsky e Marshal Voronov (primeiro e segundo a contar da esquerda) |
Stalingrado fica para a história como uma das maiores importantes batalhas da história e duvido seriamente que alguém, alguma vez, a contará melhor do que Antony Beevor. Depois de tamanho livro, não sei que mais esperar deste historiador inglês, mas será difícil voltar a estar ao mesmo nível. Talvez seja esta a única crítica a fazer a um livro perfeito: a esperança de voltar a encontrar outro do mesmo nível é mínima e nunca mais terei o prazer de ler este livro pela primeira vez. O que, obviamente, aconselho vivamente a todos os que me acompanham.