O Egipto tem um lugar especial no Médio Oriente. Não só pela sua história pré-clássica, mas também pela enorme influência que tem nas mentes de todos os árabes. Nos últimos séculos este país criou ou desenvolveu alguns dos pensamentos mais radicais e influentes do mundo árabe, tais como o Pan-Arabismo[1] de Gamal Abdel Nasser, a Irmandade Muçulmana[2] de Hassan al-Banna ou a Primavera Árabe (precedida neste caso pela Túnisia).
Mas não só no campo das ideias tem o Egipto liderado o mundo árabe. A sua população de 85 milhões de pessoas torna-o no mais populoso de todos os países do Médio Oriente, sendo seguido de perto apenas pelo Irão e Turquia, ambos países não-árabes e com as suas próprias línguas e sistemas políticos bastante peculiares. Dados os baixos salários na sua terra natal, encontramos egípcios a trabalhar por todo a região e cobrindo lugares de relevo nas monarquias petrolíferas do golfo, cuja rápida expansão os deixou numa constante necessidade de recursos especializados.
Não é por isso de estranhar que, quando a Primavera Árabe chegou à Praça Tahrir e as manifestações de centenas de milhares de pessoas exigiram e conseguiram a queda do eterno ditador Hosni Mubarak, o mundo parou. Na altura encontrava-me na Palestina. Ninguém tirava os olhos da televisão dia e noite. Toda a gente tinha a Al Jazeera no computador para ouvir os directos enquanto trabalhava e os cafés encheram-se de improvisadas bandeirinhas do Egipto. Por todo o lado respirava-se um ar de esperança como nunca vi em todos os anos da minha vida. Os acontecimentos da Tunísia já tinham deixado toda a gente boquiaberta, mas ver o Egipto a tremer parecia um sonho para todos.
Depois de muita confusão, avanços e recuos chegaram as imprevisíveis e muito esperadas eleições presidenciais. Em 2012, Mohamed Morsi torna-se no primeiro presidente eleito na história do Egipto, apoiado pela Irmandade Muçulmana. Na realidade, muitos dos que fizeram e apoiaram a revolução na Praça Tahrir de Fevereiro de 2011 não eram conservadores islâmicos. As ínumeras entrevistas feitas na altura, a forma como receberam personalidades pró-ocidentais, o facto de não se ter visto os típicos incêndios de bandeiras israelitas ou americanas, deixam-me com a certeza de que se tratava acima de tudo de uma revolução urbana, pró-democrática e liberal[3]. Durante semanas a Irmandade Muçulmana manteve-se de parte, mas juntou-se à manifestação a tempo de ainda poder colher os frutos de quem escolhe o lado certo da História.
No entanto, o Egipto não é o Cairo, e os dois mais votado da primeira volta são o conservador islâmico - mas aparentemente democrático - Mohamed Morsi e o último Primeiro-Ministro do ditador Mubarak, Ahmed Shafik. Para quem sonhava com um regime democrático e secular, que seguisse o modelo françês ou americano, foi um rude golpe. Não é possível ter a certeza, mas pelo que fui ouvindo dos egípcios que conheço, parece-me que os liberais juntaram os seus votos à Irmandade Muçulmana para impedirem um regresso de Mubarak. O resultado final foi um vitória tangencial de Morsi com 51,73% contra 48,27% de Shafik[4].
Mas Morsi não consegue estar à altura das expectativas. Pouco democrático, começa a concentrar em si todo o poder do estado perdendo rapidamente o apoiou da ala liberal e urbana que derrubara o anterior regime e, directa ou indirectamente, o colocara no poder. As forças armadas, que tinham evitado um banho de sangue na Praça Tahrir um ano e meio antes forçando a queda de Mubarak, voltam a tomar o poder como fizeram no período de transição anterior às eleições. O seu líder, o general Abdel Fatah Al Sisi manda prender Morsi[5] e rapidamente bloqueia[6] e depois ilegaliza a Irmandade Muçulmana[7], que um ano antes juntara mais de 13 milhões de votos.
Já em 2014, o mesmo Sisi ganha facilmente umas eleições a que o Partido Liberdade e Justiça (o braço político da Irmandade Muçulmana) é barrado. Lembrando outras famosas eleições na região, o novo Presidente Sisi atinge os 96,91% de votos[8]. Um fenómeno de popularidade que se estende bem para fora do Egipto. Grande parte das monarquias do Golfo[9][10], os Estados Unidos[11] e a Europa[12] rapidamente declaram a sua amizade e confiança no novo governo e presidente.
Morsi, tal como Mubarak, apodrece na cadeia pelas mesmas acusações de ter causado massacres na praça Tahrir, antes de cair do poder. A ironia é que também Sisi pode um dia juntar-se aos dois anteriores chefes de estado. Segundo o Human Rights Watch, as forças de segurança egípcias mataram intencionalmente pelo menos 817 manifestantes durante o massacre da praça de Rabaa em 2013[13]. Entretanto centenas de penas de morte são decididas em processos judiciais demasiado rápidos para poderem ser honestos[14[15], tudo isto debaixo de enormes protestos de Ban Ki Moon, secretário geral das Nações Unidas[16], assim como os Estados Unidos, alguns governos europeus[17] e várias ONG's[18].
Entretanto, a televisão do Qatar, Al Jazeera vê vários dos seus jornalistas presos e condenados a longas penas de prisão sobre acusações ridículas de terrorismo que chocaram o mundo dos media[19]. Parece-me que ninguém que conheça minimamente a política do Médio Oriente acreditará que esta não é uma apenas uma pequena batalha de uma guerra fria entre a Arábia Saudita e o Qatar, de cujo resto do mundo parece ignorar.
Por todo o lado ouço que o Egipto está óptimo, cheio de esperança e a crescer num optimismo como há muito não se via. Por todo a região, o assunto parece estar fechado e arrumado. Mas, pergunto eu, alguém acha que se pode ilegalizar os representantes de 12 milhões de votantes, fazer 16.000 presos políticos no espaço de um ano, sentenciar penas de morte a centenas com tribunais fantoche, praticar dezenas de homicídios dentro de esquadras, torturar em larga escala[20] e continuar a ser uma democracia? O Egipto escolheu um caminho do qual dificilmente terá retorno e onde todas as opções são agora demasiado sombrías: ou o ciclo de violência se alastra com os milhões de apoiantes de Morsi a contra-atacarem, correndo até o risco de uma guerra civil; ou Sisi terá que deixar todas as pretensões de ser um presidente democrático e tornar-se num ditador com pulso de ferro.
Dizia Padmé Amidala: "Então é assim que liberdade morre... com um estrondoso aplauso"[20]. Para o Médio Oriente, essas palavras nunca foram tão verdadeiras como nos dias que correm.
Mas não só no campo das ideias tem o Egipto liderado o mundo árabe. A sua população de 85 milhões de pessoas torna-o no mais populoso de todos os países do Médio Oriente, sendo seguido de perto apenas pelo Irão e Turquia, ambos países não-árabes e com as suas próprias línguas e sistemas políticos bastante peculiares. Dados os baixos salários na sua terra natal, encontramos egípcios a trabalhar por todo a região e cobrindo lugares de relevo nas monarquias petrolíferas do golfo, cuja rápida expansão os deixou numa constante necessidade de recursos especializados.
Cairo, 11 de Fevereiro de 2011. Festejos na Praça Tahrir. |
Não é por isso de estranhar que, quando a Primavera Árabe chegou à Praça Tahrir e as manifestações de centenas de milhares de pessoas exigiram e conseguiram a queda do eterno ditador Hosni Mubarak, o mundo parou. Na altura encontrava-me na Palestina. Ninguém tirava os olhos da televisão dia e noite. Toda a gente tinha a Al Jazeera no computador para ouvir os directos enquanto trabalhava e os cafés encheram-se de improvisadas bandeirinhas do Egipto. Por todo o lado respirava-se um ar de esperança como nunca vi em todos os anos da minha vida. Os acontecimentos da Tunísia já tinham deixado toda a gente boquiaberta, mas ver o Egipto a tremer parecia um sonho para todos.
Depois de cinco mil anos de História, o Egipto elege democraticamente o seu chefe de estado. 2012 Mohamed Morsi |
No entanto, o Egipto não é o Cairo, e os dois mais votado da primeira volta são o conservador islâmico - mas aparentemente democrático - Mohamed Morsi e o último Primeiro-Ministro do ditador Mubarak, Ahmed Shafik. Para quem sonhava com um regime democrático e secular, que seguisse o modelo françês ou americano, foi um rude golpe. Não é possível ter a certeza, mas pelo que fui ouvindo dos egípcios que conheço, parece-me que os liberais juntaram os seus votos à Irmandade Muçulmana para impedirem um regresso de Mubarak. O resultado final foi um vitória tangencial de Morsi com 51,73% contra 48,27% de Shafik[4].
Mas Morsi não consegue estar à altura das expectativas. Pouco democrático, começa a concentrar em si todo o poder do estado perdendo rapidamente o apoiou da ala liberal e urbana que derrubara o anterior regime e, directa ou indirectamente, o colocara no poder. As forças armadas, que tinham evitado um banho de sangue na Praça Tahrir um ano e meio antes forçando a queda de Mubarak, voltam a tomar o poder como fizeram no período de transição anterior às eleições. O seu líder, o general Abdel Fatah Al Sisi manda prender Morsi[5] e rapidamente bloqueia[6] e depois ilegaliza a Irmandade Muçulmana[7], que um ano antes juntara mais de 13 milhões de votos.
General Abdul Fatah Al Sisi, actual Presidente do Egipto |
Já em 2014, o mesmo Sisi ganha facilmente umas eleições a que o Partido Liberdade e Justiça (o braço político da Irmandade Muçulmana) é barrado. Lembrando outras famosas eleições na região, o novo Presidente Sisi atinge os 96,91% de votos[8]. Um fenómeno de popularidade que se estende bem para fora do Egipto. Grande parte das monarquias do Golfo[9][10], os Estados Unidos[11] e a Europa[12] rapidamente declaram a sua amizade e confiança no novo governo e presidente.
Morsi, tal como Mubarak, apodrece na cadeia pelas mesmas acusações de ter causado massacres na praça Tahrir, antes de cair do poder. A ironia é que também Sisi pode um dia juntar-se aos dois anteriores chefes de estado. Segundo o Human Rights Watch, as forças de segurança egípcias mataram intencionalmente pelo menos 817 manifestantes durante o massacre da praça de Rabaa em 2013[13]. Entretanto centenas de penas de morte são decididas em processos judiciais demasiado rápidos para poderem ser honestos[14[15], tudo isto debaixo de enormes protestos de Ban Ki Moon, secretário geral das Nações Unidas[16], assim como os Estados Unidos, alguns governos europeus[17] e várias ONG's[18].
Entretanto, a televisão do Qatar, Al Jazeera vê vários dos seus jornalistas presos e condenados a longas penas de prisão sobre acusações ridículas de terrorismo que chocaram o mundo dos media[19]. Parece-me que ninguém que conheça minimamente a política do Médio Oriente acreditará que esta não é uma apenas uma pequena batalha de uma guerra fria entre a Arábia Saudita e o Qatar, de cujo resto do mundo parece ignorar.
Jornalistas de todo o mundo juntam-se à causa da libertação dos jornalistas da Al Jazeera: Peter Grest, Baher Mohamed and Mohamed Fahmy |
Dizia Padmé Amidala: "Então é assim que liberdade morre... com um estrondoso aplauso"[20]. Para o Médio Oriente, essas palavras nunca foram tão verdadeiras como nos dias que correm.
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