sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Orientalismo

Edward Said, o mais famoso de todos os académicos palestinianos, simplesmente supera tudo o que li até hoje sobre o Médio Oriente. "Orientalismo", escrito há mais de três décadas, é a sua obra prima, e um dos mais influentes livros na sua área desde a sua publicação. O mais interessante é que o livro não é realmente sobre o Médio Oriente, mas sobre o campo de estudos criado pelos europeus - e mais tarde americanos - que estuda esta região. Conta-nos a história dos grandes escritores orientalistas, arabistas e outros, a forma como foram evoluindo de uma posição mais académica até ao mais puro policy making. Explora as suas limitações e, principalmente, o enorme erro de essencialismo que foi sendo multiplicado ao longo dos tempos, até os resultados do estudo do Oriente não terem qualquer semelhante com a realidade, embora fossem perfeitamente consistentes entre si.

O centro de todo o estudo é precisamente essa ideia de essencialismo: a capacidade de reduzir os orientais, em especial os árabes muçulmanos à sua religião. Como se mais nenhum factor fosse relevante. Como se o facto de se nascer num país super-exportador de petróleo com uma qualidade de vida imensa não fosse relevante para os definir. Ou, outros, viverem como refugiados do dia em que nasceram até à sua morte. Ou sob ocupação. Em liberdade ou numa ditadura. Como se o tempo não influenciasse a forma de pensar dos povos e dos indivíduos. Como se as experiências pessoais não colocassem tantos a desalinharem com a norma do seu povo.

Said está, na minha opinião, absolutamente correcto nesta sua crítica feroz ao essencialismo e ao Orientalismo moderno. E é um erro grave que, para além de apoiado e suportado por pensadores como Bernard Lewis, de quem aqui escrevi recentemente, chega às massas que tão facilmente reduzem cada um dos árabes a essa imagem geral do que é suposto ser um árabe. Um imagem imutável, essencialista e que recusa qualquer individualismo.

Neste mesmo bloque, vejo comentários assustadores de gente que deseja a morte de todos os Muçulmanos, ou noutros casos a defenderem novos Holocaustos sobre os Judeus. Como é possível que alguém defenda crimes dessa dimensão se não se convencer que os "outros" são todos iguais e todos criminosos? Que os bebés de colo estão destinados a serem terroristas ou opressores e que cada adulto está à espera do momento certo para nos atraiçoar?

A partilha de alguma ideias neste blogue durante os últimos anos ensinou-me pouco sobre História, mas bastante sobre o ódio que tantas pessoas sentem por seres que nunca viram e conheçem apenas dos filmes e noticiários. E isso é verdadeiro quer para islamofóbicos quer para anti-semitas. No seu ódio, mostram-se rigorosamente iguais.

A única crítica que faço refere-se à forma violenta como Edward Said vê, por exemplo, o uso de cientistas, historiadores, arqueólogos e burocratas que acompanharam o exército de Napoleão durante a sua invasão do Egipto em 1798. Os objectivos do imperialismo podiam estar totalmente errados, mas o uso da ciência enquanto suporte deste não é, a meu ver, particularmente estranho ou negativo. Quando comparamos com a conquista das américas pelos Espanhois e Portugueses, vemos que estes últimos não tinham o mais pequeno interesse em compreender os povos que lá viviam, as suas religiões, a sua ciência ou a sua história. Embora ainda de uma posição de superioridade - compreensiva já que ele era de facto o conquistador - olho para a atitude de Napoleão como uma demonstração de humildade perante a civilização que encontrava. Mas quanto mais nos aproximamos dos dias de hoje, mais verdadeira é a crítica de Said e mais incompreensível a forma limitada com que o mundo vê outros povos, hoje tão próximos e tão cheios de testemunhos.

Por tudo isso, ler Said é algo que aconselho vivamente a quem já tenha dedicado algum tempo a tentar compreender e pensar o Médio Oriente, mas muito mais para quem acredita já ter todas as respostas e para quem acha que "já escolheu um lado". 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Não, não sou anti-semita!

Às vezes cansa. Cada vez que faço qualquer crítica à actuação do governo de Israel, chovem as acusações de anti-semitismo. Por isso vou tentar ver se consigo deixar a minha posição clara:

- Não desejo mal a ninguém por ser Judeu, Muçulmano, Cristão, Budista, Agnóstico, Ateu ou qualquer outra religião ou falta dela.

- Na realidade não desejo mal a ninguém. Talvez seja uma posição ingénua, mas não tiro prazer do mal que acontece aos outros.

- Nenhum grupo étnico ou religioso se sobrepõe ao indivíduo. Isto significa que nenhum Judeu é individualmente culpado pelo que outra pessoa da sua etnia ou religião fez ou faz. O mesmo é válido para todos os outros credos.

- O Holocausto Nazi existiu e os Judeus as suas principais vítimas. Não foi o único genocídio da história e nem sequer do último século, mas foi o pior de todos eles.

- O anti-semitismo é um crime grave. Tão grave como o racismo, a xenofobia ou a islamofobia.

- Não apoio terrorismo de espécie nenhuma, por nenhum grupo e contra nenhum grupo. Seja ele a Al Qaeda, o Stern Gang, a ETA, o Boko Haram, Al Shabab, FP-25, Baader Meinhof ou Exército Vermelho Japonês.

- Criticar o governo de Israel não significa fazer dos seus vizinhos santos. Já públiquei inúmeros artigos sobre isso, sobre a Primavera Árabe, sobre o Egipto, Líbano, Síria e muitos outros.

- Criticar o governo de Israel não significa fazer dos palestinianos santos. Também já escrevi muitas vezes sobre os crimes de Yasser Arafat, do Hamas, sobre os bombistas suicidas entre outros.

- São muitos os Judeus de todo o mundo e até em Israel que criticam também a actuação deste e outros governos de Israel. Incluem sobreviventes do Holocausto, antigos militares, ONGs e até lóbis oficiais.

A única curiosidade é mesmo a forma como a acusação de anti-semitismo é utilizada constantemente como arma para silenciar qualquer oposição à actuação de Israel. O problema é que provavelmente.... "you might just have overplayed your hand".

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Impunidade Total

Ziad Abu Ein
Se houve algo que aprendi nos anos que passei na Palestina e a lidar com o exército de ocupação de Israel (orweliamente entitulado de Israel Defense Force) é a da inequívoca certeza da total impunidade das forças militares, policiais e serviços secretos que lá operam. Seja no homicídio de crianças e bebés em Gaza, na invasão de casas para verem os jogos da Liga dos Campeões (como relata a ONG israelita Breaking the Silence), na prisão e violência sobre elementos de ONGs de todo o mundo até, agora, à morte de um ministro do governo da Palestina, Ziad Abu Ein. 

Desarmado, foi vítima da violência dos soldados israelitas que lhe agarraram no pescoço e bateram com um capacete durante uma demonstração pacífica. Em breve aparecerão certamente relatos de que ele morreu sozinho com um relâmpago, vítima de um ataque do Hamas ou que um ataque de coração. A irrepreensível formação do IDF e a existência de meio milhão de colonos judeus ilegais em território palestiniano também não serão postas em causa. As ajudas americanas também não vão parar. certamente não será colocada em causa. Ao soldado, certamente não acontecerá nada. Depois de uma longuíssima e cuidadosa investigação, o assunto será votado ao esquecimento, como acontece a todos os outros.

Mas, sabendo que tudo isto aconteceu na Cisjordânia e não em Tel Aviv ou Haifa, a pergunta é muito simples: o que estavam lá a fazer os soldados israelitas?

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Natal em que os canhões pararam

Na noite de natal, em 1914, grupos de soldados ingleses, franceses e alemães juntaram-se nas trincheiras e beberam, cantaram e jogaram futebol juntos. Por umas horas, um inesperado (e não autorizado) cessar-fogo juntou aqueles que durante 4 anos se dedicaram a matarem-se mutuamente aos milhões.

Um segredo de estado em França e na Alemanha, noticiado no Reino Unido e considerado como traição por todos os líderes, este Natal de 1914 representou uma pequena esperança para os que advogavam um levantamento das classes proletárias contra o imperialismo de ambos os lados.

Infelizmente, o Natal não é todos os dias e em breve a matança de milhões continuou, com métodos cada vez mais mortíferos e terríveis, com armas químicas, tanques, submarinos e aviação a juntarem-se numa combinação nunca vista.

Para a história fica esta imagem, em breve centenária.