sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Stalingrad

Não é possível exagerar a importância da batalha de Estalinegrado, entre 1942 e 1943. É nesta cidade que o 6º Exército Alemão, liderado por Friedrich von Paulus, encontra o 62º Exército Soviético de Vasily Chuikov numa batalha que chega a ter mais de um milhão de homens de cada lado. As perdas para ambos foram terríveis mas, no final, o mundo suspirou de alívio quando percebeu que Hitler tinha sido decisivamente batido pela primeira vez, e que a segunda guerra mundial tinha acabado de virar a favor dos aliados. Nenhuma outra batalha da segunda guerra mundial, não obstante o seu brilhantismo técnico, números envolvidos, genialidade das tácticas militares ou qualquer outro factor foi tão decisiva como esta. É em Stalingrado - hoje Volgogrado - que a guerra foi decidida e que Stalin se torna num dos mais poderosos homens do século XX. 

É sempre um prazer ler Antony Beevor. Já aqui tinha revisto três livros deste autor (Segunda Guerra Mundial, A Queda de Berlim e Um Escritor na Guerra), todos relativos à guerra de 1939-1945 e aos quais praticamente só reservei elogios. Depois de ter detalhado tanto as qualidades deste autor e da sua obra, acho que só me resta dizer que "Stalingrad" é - de longe - o melhor de todos eles. Com o ritmo certo, enorme detalhe, mostra-nos a batalha de Estalinegrado nos vários níveis a que esta se move: entre a vontade férrea dos sanguinários Hitler e Stalin, dispostos a pagar com o sangue dos seus povos qualquer custo necessário para vencer esta batalha; na esfera do simbolismo, já que a cidade tinha o nome do ditador soviético o que leva ambos a sobrevalorizarem uma cidade já sem qualquer valor económico ou militar; das lembranças da gigantesca derrota napoleónica da Grand Armée de 1812 que perdera na invasão da Rússia quase meio milhão de soldados, obrigando o Imperador françês a regressar a Paris com apenas 27 mil soldados e a sua reputação decisivamente manchada; aos amedrontados civis apanhados no meio da mais horrorosa luta porta-a-porta; e aos pobres soldados de ambos os lados a lutar em condições miseráveis sem comida, água ou munições pelos esgotos e caves da cidade, de prédio em prédio até chegarem ao Rio Volga, no que ficou conhecida como a Rattenkrieg (por comparação à Blitzkrieg, guerra-relâmpago, os soldados alemães chamaram a este tipo de luta, "guerra dos ratos").


Estalinegrado - luta pela fábrica "Outubro Vermelho"
a apenas uma centenas de metros do rio Volga
Não deixa de ser curioso que Hitler, que tanto esforço tinha feito para consegui tomar países sem entrar em guerras urbanas tenha caído no erro de tentar tomar os escombros de Stalingrado, quando já não existiam verdadeiros motivos militares ou económicos para o fazer. Nesta altura (Outono de 1942), Hitler colecionava capitais europeias e nenhuma delas tinha sido destruída ao ponto que se viu em Stalingrado. As grandes cidades de França, Bélgica e Holanda estavam em relativo bom estado e só no leste algumas das cidades (nomeadamente na Polónia) tinham sinais sérios de bombardeamento. Em Leningrad, as tropas alemãs limitaram-se a cercar a cidade e deixá-la a morrer à fome sem se darem ao trabalho de tentarem tomá-la completamente. Mas para o lado ocidental do Volga, Hitler decidira que queria a cidade até ao seu último prédio. Toda a sua produção industrial tinha sido arruinada ou movida para leste meses antes e o tráfego fluvial que permitia a ligação do Volga até ao Mar Cáspio (e daí para a ajuda material americana através do Irão) também estava bloqueada já que o 6º Exército chegara até ao rio em vários pontos. A hubris de Hitler e a sua incapacidade em ouvir qualquer conselho dos seus generais, assim como um estado-maior das forças armadas sem qualquer capacidade ou vontade de fazer frente à intervenção directa de Hitler nos detalhes da guerra tornaram toda a situação impossível e muito pouco flexível. São lições que não foram aprendidas nessa altura e que se voltariam a revelar trágicas mais tarde durante a resposta à invasão aliada na Normandia.

Em paralelo, em Moscovo, Stalin permitiu ao seu general estrela, Georgy Zhukov a preparação de uma grande ofensiva de inverno sobre Von Paulus. Ao contrário do que era seu hábito, Stalin não tentou interferir exageradamente e aceitou a necessidade de algo diferente da habitual táctica de carne-para-canhão, com que os alemães tinham sido recebidos. Até aí, centenas de milhares de tropas soviéticas, mal preparadas, mal armadas, muitas vezes sem armas suficientes para toda a gente, eram atiradas contra as linhas da frente em missões quase suicidas contra os exércitos do Eixo. Torna-se então comum a existência de uma segunda linha soviética que disparava contra os que procurassem voltar atrás e uma política de terror fora implementada contra aqueles que desertassem (as suas famílias eram perseguidas e os seus colegas próximos ou superiories hierárquicos responsabilizados pela deserção).


Ju-87 Stuka depois de uma ataque a Estalinegrado
Depois das dificuldades do ano anterior, às portas de Moscovo, os alemães estavam à espera de uma ofensiva de inverno por parte dos russos. O que não contavam era com um movimento tão grande que cercasse a totalidade do seu exército de uma só vez. O azar calhou aos enormes, mas mal preparados exércitos Romenos que protegiam duas zonas cruciais da retaguarda, e do qual toda a logística dependia. Não obstante os oficiais romenos tenham avisado vezes sem conta das suas necessidades de armas anti-tanque, unidades blindadas e artilharia pesada, as suas forças foram na realidade ficando mais fracas à medida que mais recursos essenciais eram enviados para a Rattenkrieg.

Desta vez, Exército Vermelho prepararam-se como nunca tinham feito, juntando enormes números de soldados devidamente acompanhados da força aérea e dos modernos tanques T-34 (o seu design em curva tornava a sua blindagem muito superior a tanques do mesmo nível e as suas lagartas mais largas adaptava-se aos difíceis terrenos das estepes semi-congelada). Juntamente vinham também as unidades especializadas de atiradores furtivos, as super-estrelas do exército soviético e as tropas siberianas, com o seu equipamente camuflado branco e altamente treinadas para lutar no gelo e na neve.
Operação Uranus

No dia 19 de Novembro de 1942, inicia-se a operação Uranus, com um movimento a Norte e outro a Sudeste, com as forças a juntarem-se no rio Don (a leste do Volga), deixando os alemães e seus aliados sem capacidade de receber mantimentos, gasolina ou munições. Depois das irresponsáveis ordens para utilizar as tripulações de tanques em combates de infantaria urbanos, o exército alemão vê-se envolvido por um movimento em profundidade sem ter qualquer capacidade de resposta. Muita da sua artilharia pesada teve que ser abandonada já que as centenas de milhares de cavalos que os puxavam tinham sido levados mais para ocidente, para facilitar a logística da sua alimentação. Von Paulus mostra nessa altura a sua incapacidade. Não estava preparado para esta ofensiva. Não teve iniciativa para lhe responder adequadamente e limitou-se a fechar posições e esperar pelo futuro. A rápida actuação de Richthofen, da Luftwaffe, com os seus bombardeiros de precisão Stukas Ju-87 conseguiu dar alguma ajuda aos exércitos romenos mas foi pouco e demasiado tarde. O futuro do 6º Exército parecia estar selado.


Von Paulus (à direita) a ser interrogado pelo
Gen. Rokossovsky e Marshal Voronov
(primeiro e segundo a contar da esquerda) 
Mas o futuro nada traria de bom. O inverno apanhou os exércitos nazis sem nada e mal posicionados. Cada dia que passava estavam mais subnutridos, mais doentes e mais desidratados (mesmo com os nevões, a inexistência de combustível de tipo nenhum faziam com que não tivessem água suficiente). A ponte aérea prometida por Goering era uma fantasia que nunca poderia resultar: das 700 toneladas diárias pedidas por Von Paulus, Goering considerou que apenas 300 seriam realmente necessárias. Mas, na realidade, nem nos melhores dias conseguiram cumprir isso, mesmo quando desviaram bombardeiros para as missões de transporte. As ajudas terrestres nunca chegaram - o General Manstein não conseguiu quebrar o cerco vindo do sul, onde o seu Grupo de Exércitos do Don se encontrava, e acabou por utilizar o tempo que lhe restava para mover os seus exércitos para noroeste, conseguindo escapar ao inevitável cerco que lhe seria feito assim que o 6º Exército se rendesse. Von Paulus nunca tentou quebrar o cerco com as suas forças e cumpriu a ordem de defender a sua posição até ao fim. De todas as ordens directas que Hitler lhe deu, apenas não fez uma: não se suicidou. Mesmo depois da última promoção a Generalfeldmarschall, a apenas uns dias da destruição total do seu exército, uma indicação clara de que nunca poderia ser apanhado vivo. 

Stalingrado fica para a história como uma das maiores importantes batalhas da história e duvido seriamente que alguém, alguma vez, a contará melhor do que Antony Beevor. Depois de tamanho livro, não sei que mais esperar deste historiador inglês, mas será difícil voltar a estar ao mesmo nível. Talvez seja esta a única crítica a fazer a um livro perfeito: a esperança de voltar a encontrar outro do mesmo nível é mínima e nunca mais terei o prazer de ler este livro pela primeira vez. O que, obviamente, aconselho vivamente a todos os que me acompanham.




quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Porque o Hamas faria pior...

Nesta guerra de Gaza, voltamos a assistir aos habituais discursos e propaganda pró-Palestina e pró-Israel. Colocando de lado as típicas e trogloditas manipulações islamofóbicas e anti-semitas, encontramos um conjunto de argumentos de variada qualidade.

Um argumento utilizado pelos que defendem Israel (genericamente, a direita Europeia, a comunidade judaica mundial e grande parte dos Estados Unidos) é o de que a o ataque israelita é justo porque o Hamas faria pior se pudesse. Vou-me centrar hoje neste argumento específico.

A ideia é interessante, e parece ter algum impacto junto dos leitores. Ajuda a construir a ideia do "bem vs mal" colocando Israel do "nosso" lado e como alguém que pratica o mal apenas como último recurso, onde as vítimas civis são colaterais e que é obrigado a utilizar fogo para combater fogo.
Medina de Fez, Marrocos, onde uma vibrante comunidade
judaica residiu durante séculos

Miguel Esteves Cardoso, no Público[1], afirmava que "Mas se fosse ao contrário acham que o Hamas não usaria os foguetes mais assassinos para atacar Israel? Acham que o Hamas alguma vez os usaria só para contra-atacar, depois de um ataque israelita?". No Observador[2], Rui Ramos avisa que "A grande questão é saber quanto tempo pode um Estado democrático e de direito, como Israel, sobreviver a uma guerra sem fim. Por enquanto, tem os meios materiais necessários. Mas até quando? É que se um dia lhe faltarem, não teremos muito tempo para lastimar Israel." No Brasil, o vereador Valter Nagelstein[3], num discurso emotivo segue a mesma ideia "as cidades [de Israel] só não foram destruídas [pelos rockets do Hamas] porque Israel é uma nação desenvolvida". Ou seja... se Israel um dia não tiver um poder absolutamente demolidor sobre o seu vizinho, só podemos esperar um genocídio. Um novo Holocausto. 

Curiosamente, não é isso que a história nos diz. Nem o passado recente. Nem o presente. Durante mil e quatrocentos anos, enquanto a Europa ia vivendo sucessivas ondas de anti-semitismo, os países árabes e muçulmanos protegeram sempre esta minoria. Até 1948, milhões de judeus viviam perfeitamente integrados desde Marrocos[4] até ao Irão e Turquia. Desde o início, quando os reinos cristãos na península Ibérica foram formados, os judeus fugiram junto com os muçulmanos, sabendo o que os esperava. Em muitos casos, lutaram ao lado dos muçulmanos para defenderem as suas terras. Durante as cruzadas, os fundamentalistas cristãos atacaram e destruíram comunidades judaicas no sudeste europeu[5] e foram combatidos pelos judeus de Haifa (actual Israel) que conseguiram aguentar durante um mês o cerco de 1099. No mesmo ano, Jerusalém cai com os defensores muçulmanos e judeus a serem chacinados por igual[6]. Foi entre os muçulmanos e não entre os cristãos que durante muitos séculos os judeus se sentiram seguros.
1099 Conquista de Jerusalém pelos cruzados liderados por Geoffrey de Boullion. Judeus e muçulmanos foram massacrados de forma semelhante. Durante 90 anos (até à reconquista de Saladino em 1189),
não era permitida a entrada ou residência a judeus na cidade.

O fundamentalismo do Hamas não é a causa da violência de Israel. É, pelo contrário, o seu resultado.
Jovem palestiniano enfrenta um tanque israelita
com uma pedra durante a Primeira Intifada

O Hamas foi fundado apenas em 1987, isto é, quase 40 anos depois da criação do estado de Israel, durante a primeira intifada, o primeiro grande levantamento palestiniano onde milhares de jovens se lançaram contra as tropas de ocupação israelitas munidas apenas de pedras. Foi o falhanço de todas as outras formas de lidar com o ocupante que provocou o aparecimento de uma nova via, a do fundamentalismo islâmico. Até então, os palestinianos aceitaram a ocupação relativamente bem sem criar demasiada desordem, se tivermos em conta as limitações que já então tinham. Quando perceberam que nunca seriam cidadãos de um estado comum, que não teriam direito de voto, que não seriam incorporados na Jordânia ou no Egipto e que pouca ou nenhuma esperança tinham para o futuro, os palestinianos sairam à rua. A resposta israelita foi o que ficou conhecido por "might, power and beatings" ("força, poder e espancamentos"), um termo cunhado pelo então ministro da Defesa israelita, Yitzhak Rabin[7], que mais tarde receberia o Prémio Nobel da Paz juntamente com Yasser Arafat e que viria a ser assassinado em 1995 por um elemento da extrema direita, opositor do processo de paz). É essa política inicial de violência total sobre os manifestantes que cria e alimenta o Hamas nos seus primeiros anos tornando-o rapidamente num pretendente ao trono dos destinos da Palestina. De nada valeram as palavras horrorizadas dos judeus americanos, como noticiou o New York Times em Janeiro de 1988[8]. Esse grupo de académicos de Princeton, Harvard, entre outros escrevia então "Lemos com vergonha relatórios de espancamentos porta-a-porta de centenas de pessoas, partindo ossos e levando à hospitalização de idosos e crianças". Acrescentam depois, com acertada premonição, que esses actos "reforçam a mão aos árabes extremistas que, à semelhança dos judeus extremistas, rejeitam negociações e sonham com uma 'guerra santa'". Israel iniciara uma nova fase da sua ocupação. O Hamas iniciara uma nova fase na resistência palestiniana. 

Sobre os acontecimentos de Gaza dos últimos anos (e já vamos na terceira guerra em apenas 6 anos), já aqui falei diversas vezes. Em cada uma delas, os factos mostram-nos que Israel faz - de facto - pior. Mata mais. Indiscriminadamente. E isso são factos, não intenções nem invenções da casa de quem comenta de Lisboa ou Rio de Janeiro. O Hamas ganha força a cada guerra que perde. Israel acumula vitórias pírricas. Cada invasão israelita comprova o que tantos palestinianos acreditam: que Israel nunca lhes permitirá viver em paz e segurança. E que os sonhos de uma grande Israel (Heretz Israel, numa área muitas vezes superior ao actual território de Israel somado ao da Palestina) estão ainda vivos.
2014 Gaza. Dispensa comentários.

Garantem-nos que o que Israel faz é pouco e que "o Hamas faria pior". A verdade é que não sabemos. O que os factos nos mostram é que, consistentemente, Israel fez pior. Que na história não foram os muçulmanos que perseguiram os judeus, aliás, precisamente o contrário: protegeram-nos. Que o Hamas e a sua ideologia fanática é o resultado directo das acções violentas de Israel e não a sua causa e, finalmente, que cada nova guerra torna o Hamas mais forte e os seus rivais moderados da Fatah mais fracos.

Tudo o que acabou de ler é do conhecimento comum de qualquer israelita. Mais de 90% dos judeus israelitas apoiam a guerra[9]. Agora pergunto: Quererá mesmo Israel a paz?

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Inverno Egípcio

O Egipto tem um lugar especial no Médio Oriente. Não só pela sua história pré-clássica, mas também pela enorme influência que tem nas mentes de todos os árabes. Nos últimos séculos este país criou ou desenvolveu alguns dos pensamentos mais radicais e influentes do mundo árabe, tais como o Pan-Arabismo[1] de Gamal Abdel Nasser, a Irmandade Muçulmana[2] de Hassan al-Banna ou a Primavera Árabe (precedida neste caso pela Túnisia).

Mas não só no campo das ideias tem o Egipto liderado o mundo árabe. A sua população de 85 milhões de pessoas torna-o no mais populoso de todos os países do Médio Oriente, sendo seguido de perto apenas pelo Irão e Turquia, ambos países não-árabes e com as suas próprias línguas e sistemas políticos bastante peculiares. Dados os baixos salários na sua terra natal, encontramos egípcios a trabalhar por todo a região e cobrindo lugares de relevo nas monarquias petrolíferas do golfo, cuja rápida expansão os deixou numa constante necessidade de recursos especializados.
Cairo, 11 de Fevereiro de 2011. Festejos na Praça Tahrir.

Não é por isso de estranhar que, quando a Primavera Árabe chegou à Praça Tahrir e as manifestações de centenas de milhares de pessoas exigiram e conseguiram a queda do eterno ditador Hosni Mubarak, o mundo parou. Na altura encontrava-me na Palestina. Ninguém tirava os olhos da televisão dia e noite. Toda a gente tinha a Al Jazeera no computador para ouvir os directos enquanto trabalhava e os cafés encheram-se de improvisadas bandeirinhas do Egipto. Por todo o lado respirava-se um ar de esperança como nunca vi em todos os anos da minha vida. Os acontecimentos da Tunísia já tinham deixado toda a gente boquiaberta, mas ver o Egipto a tremer parecia um sonho para todos.

Depois de cinco mil anos de História,
 o Egipto elege democraticamente o seu chefe de estado.
2012 Mohamed Morsi
Depois de muita confusão, avanços e recuos chegaram as imprevisíveis e muito esperadas eleições presidenciais. Em 2012, Mohamed Morsi torna-se no primeiro presidente eleito na história do Egipto, apoiado pela Irmandade Muçulmana. Na realidade, muitos dos que fizeram e apoiaram a revolução na Praça Tahrir de Fevereiro de 2011 não eram conservadores islâmicos. As ínumeras entrevistas feitas na altura, a forma como receberam personalidades pró-ocidentais, o facto de não se ter visto os típicos incêndios de bandeiras israelitas ou americanas, deixam-me com a certeza de que se tratava acima de tudo de uma revolução urbana, pró-democrática e liberal[3]. Durante semanas a Irmandade Muçulmana manteve-se de parte, mas juntou-se à manifestação a tempo de ainda poder colher os frutos de quem escolhe o lado certo da História.

No entanto, o Egipto não é o Cairo, e os dois mais votado da primeira volta são o conservador islâmico - mas aparentemente democrático - Mohamed Morsi e o último Primeiro-Ministro do ditador Mubarak, Ahmed Shafik. Para quem sonhava com um regime democrático e secular, que seguisse o modelo françês ou americano, foi um rude golpe. Não é possível ter a certeza, mas pelo que fui ouvindo dos egípcios que conheço, parece-me que os liberais juntaram os seus votos à Irmandade Muçulmana para impedirem um regresso de Mubarak. O resultado final foi um vitória tangencial de Morsi com 51,73% contra 48,27% de Shafik[4].

Mas Morsi não consegue estar à altura das expectativas. Pouco democrático, começa a concentrar em si todo o poder do estado perdendo rapidamente o apoiou da ala liberal e urbana que derrubara o anterior regime e, directa ou indirectamente, o colocara no poder. As forças armadas, que tinham evitado um banho de sangue na Praça Tahrir um ano e meio antes forçando a queda de Mubarak, voltam a tomar o poder como fizeram no período de transição anterior às eleições. O seu líder, o general Abdel Fatah Al Sisi manda prender Morsi[5] e rapidamente bloqueia[6] e depois ilegaliza a Irmandade Muçulmana[7], que um ano antes juntara mais de 13 milhões de votos.
General Abdul Fatah Al Sisi,
actual Presidente do Egipto

Já em 2014, o mesmo Sisi ganha facilmente umas eleições a que o Partido Liberdade e Justiça (o braço político da Irmandade Muçulmana) é barrado. Lembrando outras famosas eleições na região, o novo Presidente Sisi atinge os 96,91% de votos[8]. Um fenómeno de popularidade que se estende bem para fora do Egipto. Grande parte das monarquias do Golfo[9][10], os Estados Unidos[11] e a Europa[12] rapidamente declaram a sua amizade e confiança no novo governo e presidente. 

Morsi, tal como Mubarak, apodrece na cadeia pelas mesmas acusações de ter causado massacres na praça Tahrir, antes de cair do poder. A ironia é que também Sisi pode um dia juntar-se aos dois anteriores chefes de estado. Segundo o Human Rights Watch, as forças de segurança egípcias mataram intencionalmente pelo menos 817 manifestantes durante o massacre da praça de Rabaa em 2013[13]. Entretanto centenas de penas de morte são decididas em processos judiciais demasiado rápidos para poderem ser honestos[14[15], tudo isto debaixo de enormes protestos de Ban Ki Moon, secretário geral das Nações Unidas[16], assim como os Estados Unidos, alguns governos europeus[17] e várias ONG's[18].

Entretanto, a televisão do Qatar, Al Jazeera vê vários dos seus jornalistas presos e condenados a longas penas de prisão sobre acusações ridículas de terrorismo que chocaram o mundo dos media[19]. Parece-me que ninguém que conheça minimamente a política do Médio Oriente acreditará que esta não é uma apenas uma pequena batalha de uma guerra fria entre a Arábia Saudita e o Qatar, de cujo resto do mundo parece ignorar.


Jornalistas de todo o mundo juntam-se à causa da libertação
 dos jornalistas da Al Jazeera: Peter Grest, Baher Mohamed and Mohamed Fahmy
Por todo o lado ouço que o Egipto está óptimo, cheio de esperança e a crescer num optimismo como há muito não se via. Por todo a região, o assunto parece estar fechado e arrumado. Mas, pergunto eu, alguém acha que se pode ilegalizar os representantes de 12 milhões de votantes, fazer 16.000 presos políticos no espaço de um ano, sentenciar penas de morte a centenas com tribunais fantoche, praticar dezenas de homicídios dentro de esquadras, torturar em larga escala[20] e continuar a ser uma democracia? O Egipto escolheu um caminho do qual dificilmente terá retorno e onde todas as opções são agora demasiado sombrías: ou o ciclo de violência se alastra com os milhões de apoiantes de Morsi a contra-atacarem, correndo até o risco de uma guerra civil; ou Sisi terá que deixar todas as pretensões de ser um presidente democrático e tornar-se num ditador com pulso de ferro.

Dizia Padmé Amidala: "Então é assim que liberdade morre... com um estrondoso aplauso"[20]. Para o Médio Oriente, essas palavras nunca foram tão verdadeiras como nos dias que correm.




segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Palestina e os refugiados

1948 Coluna de refugiados palestinianos
Uma das questões centrais do problema Israelo-Árabe e de uma futura solução de paz (seja ela de um ou dois estados) é do direito de regresso dos refugiados. E embora exista uma resolução da ONU (Resolução 194 de 1948[1]) que indica claramente que o direito de regresso existe, este continua a ser um dos temas que tem bloqueado muitas das conversações de paz. O grande problema é que depois de tantas guerras, de uma limpeza étnica em larga escala (em 1948[2]) e da não integração dos descendentes de refugiados nos países de acolhimento, existem hoje, segundo as Nações Unidas, mais de 5 milhões de refugiados palestinianos[3].
Ministro israelita dos Negócios Estrangeiros,
 Moshe Sharett, assina o acordo de reparações
 entre Israel e a Alemanha (RFA) em 1952

Dada a quantidade de refugiados, existe um problema claramente financeiro, ou seja, se de um momento para outro regressassem todas estes milhões de palestinianos (ou mesmo uma fracção delas) com direito a reaverem as suas terras, casas, depósitos bancários, bens ou compensações por valor semelhante, isso arruinaria imediatamente o estado de Israel e provavelmente também o da Palestina. Ou seja, é perfeitamente impraticável que tal aconteça, não obstante ser da mais elementar justiça que isso acontecesse. Aliás, o próprio estado de Israel, enquanto auto-entitulado representante de todos os judeus do mundo presentes e passados, recebeu enormes compensações da Alemanha[4] pelos crimes cometidos por esta durante a segunda guerra mundial. Nesse sentido, Israel deveria também arcar com as consequências dos seus actos de 1948 em diante.

No entanto, muitos destes refugiados não nasceram na Palestina ou em Israel. Muitos são filhos ou mesmo netos dos refugiados de 1948 ou 1967[5]. Isto causa alguma estranheza já que em muitos outros lugares do planeta existiram migrações massivas forçadas durante os anos 40 e no entanto não temos hoje um problema grave de refugiados na Ucrânia, na Alemanha ou na Polónia (só para dar alguns exemplos). Na mesma altura, durante a criação do estado de Israel, cerca de 700 mil judeus que viviam em países árabes, desde Marrocos até ao Irão são forçados também a fugir de suas casas. Uma enorme comunidade perfeitamente integrada nas sociedades desses países desde tempos ancestrais, foram subitamente considerados personas non gratas e fugiram para Israel. Marrocos, onde viviam um quarto de milhão de judeus está hoje reduzida a uns insignificantes dois mil. O Iraque, com mais de 100 mil judeus em 1948 tem hoje virtualmente zero e os únicos países que mantêm acima de dez mil judeus é a Turquia e o Irão, mas mesmo assim muito menos do que no final da segunda guerra mundial[6].

A grande diferença entre todos estes refugiados e os refugiados palestinianos está no comportamento dos países de acolhimento. E, devemos sublinhar, países anfitriãos que partilham cultura, língua, religião e história com a esmagadora maioria de pessoas desta vaga de refugiados.

Do outro lado do Jordão, a Jordânia é hoje o mais amigável dos vizinhos quer para israelitas quer para palestinianos. No entanto, nem tudo começou bem e desde a derrota de 1967, na guerra dos 6 dias, os refugiados palestinianos foram mantidos também como cidadãos de segunda. Acabou com o terrível "Setembro Negro"[7], uma guerra civil entre palestinianos e jordanos em grande parte provocada por Yasser Arafat num dos seus inúmeros erros  (e crimes) que resultaram em milhares de vítimas mortais. Muito poderia ter sido salvo se Arafat tivesse aceitado a proposta do Rei Hussein da Jordânia para servir como seu Primeiro-Ministro em 1974[8], o que teria levado à inclusão dos palestinianos como jordanos de pleno direito nessa altura. Infelizmente tal não aconteceu e acabou por fugir com as suas tropas para uma das outras concentrações de refugiados da Palestina: o Líbano.
1982 Yasser Arafat em Beirute

A norte, um Líbano que era supostamente o estado cristão maronita do Médio Oriente, via a sua frágil maioria política a desvanecer-se rapidamente para maior taxa de natalidade dos sunitas, shiitas e druzes[9][10]. O pecado original de, com o apoio da potência colonial gaulesa, terem criado um país com demasiado território e onde a os cristãos detinham mais poder político mas uma maioria demográfica muito ligeira. Desta forma, os palestinianos foram mal vistos e mantidos em guetos sem acesso aos serviços do estado (como educação ou justiça) e, durante décadas, sem terem sequer o direito de transformar as suas barracas em casas. Foram proibidas a utilização de variados materias de construção e o exército libanês mantinha este população de centenas de milhares permanentemente policiada[11][12]. Não é de estranhar que 1975 o país entrasse em guerra, precisamente entre cristãos e palestinianos (teve várias outras fases onde as várias facções regionais foram intervindo, como os sunitas, shiitas, israelitas, sírios e iranianos, para além dos Estados Unidos da América, Itália e França). Até hoje, os palestinianos nascidos no Líbano continuam a não ter passaporte libanês nem têm qualquer representação política[13].


2014 Palestinianos do campo de refugiados de Yarmouk,
perto de Damasco na Síria. (Imagem da UNRWA,
agência responsável pelos refugiados palestinianos)
Na Síria a situação era semelhante, embora os palestinianos nunca tenham conseguido criar a situação de "estado dentro de um estado", como aconteceu na Jordânia e Líbano. Hoje, muitos palestinianos nascidos na Síria estão novamente em fuga devido à selvagem guerra civil de destrói o país a cada dia que passa.
1948 Campo de Refugiados palestinianos em Gaza

Para sudoeste, numa pequena faixa de território denominada Gaza e praticamente desconhecida do mundo, viviam apenas 80 mil habitantes[14]. Em 1948 chegaram até quase 300 mil habitantes[15]. Com as vagas seguintes de refugiados e o seu crescimento demográfico natural, passa de uma pequena cidade agrícola e piscatória para um dos lugares mais populosos à face da terra. Nas tréguas que se seguiram à guerra da independência de Israel, este território ficou nas mãos do Egipto[16], mas este nunca abriu o território ao Sinai nem permitiu que fossem considerados egípcios. Para todos os efeitos, tal como os restantes vizinhos árabes, o Egipto não queria o preço de absorver a população e queria manter o estatuto de refugiado vivo assim como um problema político grave para Israel. Com a paz conseguida em 1978/1979[17] entre Menachem Begin e Anwar Sadat (respectivamente líderes de Israel e Egipto), a faixa de Gaza e a Cisjordânia deveriam ter recebido a sua autonomia[18] num período de 5 anos, mas Israel nunca permitiu que essa parte do acordo fosse honrada. Como tal Gaza, ficou progressivamente mais isolada, e cada vez mais ocupada por colonos israelitas. Mais recentemente, com a decisão de Ariel Sharon de retirar todos os colonos israelitas de Gaza em 2005[19], o pequeno território de um milhão e oitocentas mil pessoas deixa de ser um sítio isolado para o que teremos de chamar de prisão a céu aberto, com todas as suas fronteiras terrestres, marítimas e aéreas controladas por Israel, com excepção da fronteira do Sinai, em Rafat. Entre Israel e Egipto, o povo de Gaza está hoje fechado num cerco absoluto.

Ou seja, cinco milhões e meio de palestinianos espalhados pelo mundo, tratados como cidadãos de segunda em todo o lado. Muitos conseguiram ser refugiados mais do que uma vez na vida. Histórias que ouço regularmente quando encontro palestinianos que cresceram nos campos de refugiados da Jordânia ou do Líbano, depois conseguiram ir trabalhar para o Kuweit para, depois da Tempestade do Deserto[20] serem expulsos novamente. Uma história que prometo contar com mais detalhe um destes dias. Mais um tiro no pé de Yasser Arafat, depois de apoiar Saddam Hussein na sua invasão do Kuweit[21].

Que fazer? Sinceramente eu só vejo uma solução. Num acordo de paz total entre Israel, Palestina e a Liga Árabe, (1) os refugiados devem ter direito a compensações mas não ao direito de regresso. O mesmo em relação aos refugiados judeus dos países árabes; (2) todos os palestinianos nascidos nos restantes países árabes devem ganhar cidadania automática (percebo que os negociadores da Autoridade Palestiniana não queiram admitir isto porque dependem também das ofertas monetárias de antigos refugiados e muitos países árabes apoiam a causa mas querem livrar-se dos palestinianos, mas não vejo outra forma). Os Estados Unidos da América e a União Europeia, se quiserem ajudar, podem contribuir muito quer na parte diplomática quer financeira. No final, quer Israel quer Palestina, têm que ter as suas fronteiras seguras, viver em liberdade e ter acesso aberto ao mundo. A Palestina independente poderá depois permitir ou promover o regresso dos antigos refugiados à nova Palestina.

A questão dos refugiados não é a única em aberto, mas é uma das mais complexas e provavelmente uma que não tem soluções ideais. Outros assuntos, como o estatuto de Jerusalém e os colonatos na Cisjordânia terão também que ser decididos, e certamente teremos também tempo para falar sobre esse assunto em breve.



sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Califa mostra o seu músculo

As guerras de Israel têm sempre grande atenção mediática. Alguns acreditam que isso acontece porque muita gente é anti-semita e/ou islamofóbica mas, para ser sincero, acho que isso representa uma pequena parte da população mundial. O conflito israelo-árabe é um assunto que tem tudo para captar a atenção de todo o globo. Uma história de David e Golias, onde o judeu já não é David. O último capítulo do colonialismo europeu no mundo árabe. Os lugares santos das três grandes religiões monoteístas do mundo e o berço de duas delas. Só por si, isto é suficiente para que metade do mundo sinta todo o conflito como algo muito próximo.

Mas, por muito que desgostemos do Hamas e da actuação do governo israelita, a verdade é que existem personagens muito piores no Médio Oriente.


O ISIL utiliza equipamento americano
capturado ao exército iraquiano
De longe, a mais assustadora figura do Médio Oriente actual é Abu Bakr  Al Bagdadi, líder do Califado Islâmico (também conhecido por Estado Islâmico, IS, ISIS ou ISIL). Neste momento controla um terço do Iraque e um terço da Síria. As suas conquistas continuaram no último mês e continua a montar um país à sua imagem e semelhança. Chegam-nos rumores de massacres, centenas de milhares de cristãos e shiitas em fuga e os Peshmerga, as forças armadas do quase-estado Curdistão, a terem que recuar em muitas posições. 

Durante o dia de hoje, o presidente americano Barack Obama anunciou que
Milhares de cristãos fogem para Erbil
depois de lhes ser dada as opções
de se converterem, fugirem ou serem mortos.
utilizaria a aviação para bombardear os movimentos de tropas do ISIL se colocassem em risco os interesses americanos, destacando nesses a embaixada em Bagdad e o consulado em Erbil (capital do Curdistão que fica a 80km de Mosul, a segunda maior cidade iraquiana e que está nas mãos do ISIL).

Quer o governo curdo quer o governo iraquiano têm noção do perigo que correm. Ontem o Primeiro-Ministro iraquiano, Nouri Al Maliki autorizou a aviação iraquiana a ajudar as tropas curdas. Depois de uma década de costas voltadas, talvez seja o ISIL que vai conseguir unir novamente um Iraque que tem tudo para ser desfeito em três países diferentes.

Para mim, o mais estranho de Abu Bakr e seu gangue é que duvido seriamente que tenham um apoio popular real e em larga escala. E a longo prazo, não é possível manter um exército onde grande parte da força é formada por amigos de ocasião, que querem ver Al Maliki cair mas que em nada se revêm nas posições talibans do Estado Islâmico. E, se é verdade que algumas destas conquistas renderam muito dinheiro - só no banco central de Mosul levaram cerca de 500 milhões de dólares - este grupo teve que ser sustentado financeiramente por alguém exterior durante muito tempo. Esses, devem estar hoje preocupados com o monstro que ajudaram a criar...