quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Porque o Hamas faria pior...

Nesta guerra de Gaza, voltamos a assistir aos habituais discursos e propaganda pró-Palestina e pró-Israel. Colocando de lado as típicas e trogloditas manipulações islamofóbicas e anti-semitas, encontramos um conjunto de argumentos de variada qualidade.

Um argumento utilizado pelos que defendem Israel (genericamente, a direita Europeia, a comunidade judaica mundial e grande parte dos Estados Unidos) é o de que a o ataque israelita é justo porque o Hamas faria pior se pudesse. Vou-me centrar hoje neste argumento específico.

A ideia é interessante, e parece ter algum impacto junto dos leitores. Ajuda a construir a ideia do "bem vs mal" colocando Israel do "nosso" lado e como alguém que pratica o mal apenas como último recurso, onde as vítimas civis são colaterais e que é obrigado a utilizar fogo para combater fogo.
Medina de Fez, Marrocos, onde uma vibrante comunidade
judaica residiu durante séculos

Miguel Esteves Cardoso, no Público[1], afirmava que "Mas se fosse ao contrário acham que o Hamas não usaria os foguetes mais assassinos para atacar Israel? Acham que o Hamas alguma vez os usaria só para contra-atacar, depois de um ataque israelita?". No Observador[2], Rui Ramos avisa que "A grande questão é saber quanto tempo pode um Estado democrático e de direito, como Israel, sobreviver a uma guerra sem fim. Por enquanto, tem os meios materiais necessários. Mas até quando? É que se um dia lhe faltarem, não teremos muito tempo para lastimar Israel." No Brasil, o vereador Valter Nagelstein[3], num discurso emotivo segue a mesma ideia "as cidades [de Israel] só não foram destruídas [pelos rockets do Hamas] porque Israel é uma nação desenvolvida". Ou seja... se Israel um dia não tiver um poder absolutamente demolidor sobre o seu vizinho, só podemos esperar um genocídio. Um novo Holocausto. 

Curiosamente, não é isso que a história nos diz. Nem o passado recente. Nem o presente. Durante mil e quatrocentos anos, enquanto a Europa ia vivendo sucessivas ondas de anti-semitismo, os países árabes e muçulmanos protegeram sempre esta minoria. Até 1948, milhões de judeus viviam perfeitamente integrados desde Marrocos[4] até ao Irão e Turquia. Desde o início, quando os reinos cristãos na península Ibérica foram formados, os judeus fugiram junto com os muçulmanos, sabendo o que os esperava. Em muitos casos, lutaram ao lado dos muçulmanos para defenderem as suas terras. Durante as cruzadas, os fundamentalistas cristãos atacaram e destruíram comunidades judaicas no sudeste europeu[5] e foram combatidos pelos judeus de Haifa (actual Israel) que conseguiram aguentar durante um mês o cerco de 1099. No mesmo ano, Jerusalém cai com os defensores muçulmanos e judeus a serem chacinados por igual[6]. Foi entre os muçulmanos e não entre os cristãos que durante muitos séculos os judeus se sentiram seguros.
1099 Conquista de Jerusalém pelos cruzados liderados por Geoffrey de Boullion. Judeus e muçulmanos foram massacrados de forma semelhante. Durante 90 anos (até à reconquista de Saladino em 1189),
não era permitida a entrada ou residência a judeus na cidade.

O fundamentalismo do Hamas não é a causa da violência de Israel. É, pelo contrário, o seu resultado.
Jovem palestiniano enfrenta um tanque israelita
com uma pedra durante a Primeira Intifada

O Hamas foi fundado apenas em 1987, isto é, quase 40 anos depois da criação do estado de Israel, durante a primeira intifada, o primeiro grande levantamento palestiniano onde milhares de jovens se lançaram contra as tropas de ocupação israelitas munidas apenas de pedras. Foi o falhanço de todas as outras formas de lidar com o ocupante que provocou o aparecimento de uma nova via, a do fundamentalismo islâmico. Até então, os palestinianos aceitaram a ocupação relativamente bem sem criar demasiada desordem, se tivermos em conta as limitações que já então tinham. Quando perceberam que nunca seriam cidadãos de um estado comum, que não teriam direito de voto, que não seriam incorporados na Jordânia ou no Egipto e que pouca ou nenhuma esperança tinham para o futuro, os palestinianos sairam à rua. A resposta israelita foi o que ficou conhecido por "might, power and beatings" ("força, poder e espancamentos"), um termo cunhado pelo então ministro da Defesa israelita, Yitzhak Rabin[7], que mais tarde receberia o Prémio Nobel da Paz juntamente com Yasser Arafat e que viria a ser assassinado em 1995 por um elemento da extrema direita, opositor do processo de paz). É essa política inicial de violência total sobre os manifestantes que cria e alimenta o Hamas nos seus primeiros anos tornando-o rapidamente num pretendente ao trono dos destinos da Palestina. De nada valeram as palavras horrorizadas dos judeus americanos, como noticiou o New York Times em Janeiro de 1988[8]. Esse grupo de académicos de Princeton, Harvard, entre outros escrevia então "Lemos com vergonha relatórios de espancamentos porta-a-porta de centenas de pessoas, partindo ossos e levando à hospitalização de idosos e crianças". Acrescentam depois, com acertada premonição, que esses actos "reforçam a mão aos árabes extremistas que, à semelhança dos judeus extremistas, rejeitam negociações e sonham com uma 'guerra santa'". Israel iniciara uma nova fase da sua ocupação. O Hamas iniciara uma nova fase na resistência palestiniana. 

Sobre os acontecimentos de Gaza dos últimos anos (e já vamos na terceira guerra em apenas 6 anos), já aqui falei diversas vezes. Em cada uma delas, os factos mostram-nos que Israel faz - de facto - pior. Mata mais. Indiscriminadamente. E isso são factos, não intenções nem invenções da casa de quem comenta de Lisboa ou Rio de Janeiro. O Hamas ganha força a cada guerra que perde. Israel acumula vitórias pírricas. Cada invasão israelita comprova o que tantos palestinianos acreditam: que Israel nunca lhes permitirá viver em paz e segurança. E que os sonhos de uma grande Israel (Heretz Israel, numa área muitas vezes superior ao actual território de Israel somado ao da Palestina) estão ainda vivos.
2014 Gaza. Dispensa comentários.

Garantem-nos que o que Israel faz é pouco e que "o Hamas faria pior". A verdade é que não sabemos. O que os factos nos mostram é que, consistentemente, Israel fez pior. Que na história não foram os muçulmanos que perseguiram os judeus, aliás, precisamente o contrário: protegeram-nos. Que o Hamas e a sua ideologia fanática é o resultado directo das acções violentas de Israel e não a sua causa e, finalmente, que cada nova guerra torna o Hamas mais forte e os seus rivais moderados da Fatah mais fracos.

Tudo o que acabou de ler é do conhecimento comum de qualquer israelita. Mais de 90% dos judeus israelitas apoiam a guerra[9]. Agora pergunto: Quererá mesmo Israel a paz?

4 comentários:

  1. É sempre extremamente informativo vir aqui ao seu blogue, que foca temas que a mim também sempre me interessaram. Realmente é um facto que durante tempos e tempos judeus e muçulmanos conviveram pacificamente. Na Tunísia, por ex, há uma comunidade judaica em Djerba e também em La Goulette, Tunis. Viveram sempre em paz, lá. O que desencadeou esta "guerra" foi mesmo a ocupação israelita. Aliás todo o terrorismo muçulmano ( e ódio aos EUA) vem daí. Até 1948 nada disso existia.

    ResponderEliminar
  2. Excelente texto. Os meus parabéns.

    ResponderEliminar