sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Et tu Catarina?

Bastaram umas semanas para que o salário mínimo nacional de 600 euros proposto pelo Bloco de Esquerda no seu programa eleitoral[1] cair. Há menos de um mês "A urgência é a criação de emprego, a reposição integral dos salários cortados e o aumento do salário mínimo nacional para 600 euros" (p.11 do manifesto legislativas 2015 publicado no site oficial do BE). Agora a porta-voz Catarina Martins diz-nos "Seria demagógica se dissesse que seria possível ter 600 euros em 2016, não é possível".

Na primeira vez que lhe cheirou a governo (alguns diriam tachos, mas não me parece que devamos ir tão longe) o Bloco desistiu já à cabeça daquela que seria a mais importante e marcante decisão para tantos portugueses que mesmo trabalhando a tempo inteiro não conseguem sair de uma situação de pobreza como tão bem explicou Mariana Aiveca, deputada do Bloco de Esquerda na Assembleia República em 2013[2]

O que é curioso é que neste caso não existe sequer a desculpa habitual. Tipicamente os governos entram em funções e rapidamente informam o país, com um ar de grande consternação de que as informações a que agora estão a a ter acesso mostram que a situação do país era pior do que o governo anterior tinha informado. Nesse sentido, os objectivos do programa eleitoral têm que ser redefinidos e avaliados e não demora até que caiam todas as propostas originais que tenham qualquer tipo de custo financeiro associado. Depois de umas semanas falando sobre a possível criminalização por gestão danosa dos anteriores governantes, o assunto é atirado para o esquecimento até às legislativas seguintes.

Mas isso não aconteceu a Catarina Martins, Mariana Mortágua e o resto da trupe. Bastou sentarem-se a conversar umas horas com António Costa (que não sendo governo não tem ainda acesso a nenhuma informação nova) e já nos veio dizer que 600 euros é demagogia. Ou seja, que o seu próprio plano de governo é demagogia. Pois demagogia é apenas uma palavra cara para... mentira. O Bloco de Esquerda não demorou a tornar-se em tudo aquilo que sempre viu nos outros. Mas enfim, só tinham duas hipóteses: ou destroem o país ou são mentirosos. Se vão mesmo chegar ao governo, eu agradeceria se não destruissem o país a um ponto que não dê para o recuperar.

PS: Acrescento apenas que é de facto uma pena vermos o BE perder a sua inocência. É que em muitas situações, a posição política do BE era de facto um lufada de ar fresco, como nas questões da Palestina, no caso de Luaty Beirão, Rafael Marques e em muitas outras questões de direitos humanos onde o BE é sem dúvida o partido que tem consistentemente estado do lado certo da história.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Governo de Destruição Nacional

Já há muito que António Costa nos mostrou o que valia: Quando Lisboa precisou de cultura, tentou roubar o Red Bull Air Race ao Porto. Quando precisou de limpar dívida, passou-a para o Estado central. Quando precisou da liderança do PS, rasgou o acordo com que tinha feito com José Seguro apenas uns meses antes e atirou-o pela janela. Não deveria ser por isso estranho que mesmo depois falhar o seu objectivo primário (a maioria absoluta) e também o secundário, que seria uma maioria relativa, e fracassando ainda o objectivo (criado à última hora por artistas como Adão e Silva) de "ter mais deputados do que a parte da coligação que corresponde ao PSD", Costa ainda achasse que devia ser Primeiro-Ministro.

António Costa prometeu que não iria mandar o governo abaixo se não tivesse uma alternativa garantida à esquerda. Mas já devíamos saber que essas promessas não são para ser cumpridas. Num momento de ira pós declaração do Presidente Cavaco Silva, e numa decisão ululantemente apoiada pelas suas tão fieis (?) hostes, já nos informou que irá rejeitar o plano de governo (independentemente do que lá estiver escrito) e que o governo da coligação PSD/CDS tem os seus dias contados.

Mas a coligação negativa ameaça agora tornar-se numa espécie de Governo de Destruição Nacional. Uma oportunidade de tempo limitado (vamos ignorar desde já o conto de crianças de que seria para durar 4 anos...) para colocar factos no terreno que depois são dificílimos de alterar. O canto da sereia syrizista já clama os amanhãs que cantam com mais salários e reformas, menos horas de trabalho, o fim das privatizações em curso e menos impostos o que significa que, como não existe qualquer impedimento constitucional, e desde que os três líderes da esquerda nacional tenham a coragem de se juntar num governo "a sério" (daqueles em que eles se comprometem a governar mesmo, com Ministros e outras responsabilidades) lá teremos oportunidade de fazer história. Carlos César já nos explicou a matemática deste modelo: se os objectivos não forem cumpridos... mudam-se os objectivos à posteriori. Eu, pessoalmente, acho que evitava emprestar dinheiro a alguém que pensa desta forma...

Vai ser uma aventura cara, que provavelmente levará umas décadas a recuperar e naturalmente que irá rapidamente destruir qualquer equilíbrio financeiro, comercial e produtivo que Portugal conseguiu recuperar depois da combinação explosiva de Sócrates com a Grande Recessão. E será certamente triste ver Portugal a ter que pedinchar mais uma ajuda externa de uma qualquer troika (ups, "instituições credoras") pela quarta vez em quatro décadas. Mas enfim, talvez seja mesmo esse o preço a pagar para que Portugal deixe de vez ter um milhão de pessoas a votar em soviéticos e trotskistas e nos possamos finalmente juntar ao grupo dos países verdadeiramente desenvolvidos.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

1942 - O Brasil e a sua guerra quase desconhecida

É relativamente comum encontrar livros de que não gosto pela sua forma ou pelas suas opiniões, mas não é habitual encontrar um livro com tantos erros históricos. Tantos, que inevitavelmente colocamos em dúvida tudo o que de novo encontramos no livro. 

Escrito por João Barone, entusiasta da FEB (Força Expedicionária Brasileira) e filho de um veterano que lutou na segunda guerra mundial na frente italiana este "1942 - O Brasil e a sua guerra quase desconhecida" poderia ser um documento interessantíssimo que desse ao público um maior conhecimento sobre a experiência brasileira na guerra.

Mesmo não sendo eu brasileiro, tive imensa curiosidade em ler o livro assim que o vi. O Brasil lutou na segunda guerra mundial, mas mesmo para quem já tenha lido dezenas de livros e documentários sobre esta guerra, o nome do país praticamente não é referido. A sua importância foi obviamente pequena e a sua participação limitada e tardia, mas o que fez desta guerra uma guerra mundial foi precisamente o facto da sua dimensão ser tal que mesmo países longe dos principais palcos de batalha - Europa, Norte de África, Pacífico e China - foram seriamente afectados. 

Mas o que encontrei foi, infelizmente, um livro confuso e com graves erros. A sequência cronológica é constantemente atropelada o que permite ao autor usar como argumentos situações fora do seu tempo. Se as descrições dos soldados e pequenas unidades são bastante interessantes, a visão macro da guerra parece excessivamente deturpada e pouco clara. A verdade é que a FEB foi enviada para Itália numa altura em que o desembarque da Normandia já tinha sido feito com sucesso e devidamente consolidado. No leste os exércitos de Hitler e seus aliados já tinha sido amargamente derrotados em Stalingrado e em Kursk e estavam a retirar ou a ser cercadas por uma frente que retrocedia centenas de quilómetros. No atlântico, os submarinos alemães estavam a ser dizimados pela frota americana e o Norte de África estava já totalmente limpo de forças do eixo. Numa frase, a guerra estava ganha quando o Brasil efectivamente pega em armas para lutar contra a Alemanha Nazi. E, numa guerra onde morreram muitos milhões de combatentes e ainda mais civis, o Brasil enviou apenas 25 mil homens para o terreno. Por vezes, Barone perde essa perspectiva e procura energicamente mostrar a importância da frente em que os brasileiros combatiam.

Quanto aos erros e imprecisões, deixo aqui alguns que espero que possam ser devidamente corrigidos em posteriores edições do livro: (p116) a ocupação da Guiana Holandesa pelos Estados Unidos em Novembro de 1941 foi feita com o acordo do governo holandês no exílio. Falar apenas de ocupação leva os leitores a (erradamente) pensarem que foi uma invasão. (p128) referir a hipótese de que o governo americano tivesse conhecimento do iminente ataque a Pearl Harbour (algo que é categoricamente desmentido por todos os historiadores) dizendo apenas que foi "algo nunca comprovado" contribui para alimentar a própria ideia. "Não comprovado" é uns graus diferente de "não existe a mais pequena prova nesse sentido". (p168) obviamente a ELO (Esquadrilha de Ligação e Observação) não executou a sua primeira missão no dia 12 de Novembro de 1945, já que a guerra já tinha acabado à muito por essa altura. (p181) sobre as deserções no FEB, duas em 25 mil são matematicamente menos de um por cento, tal como diz o autor, mas seria mais preciso se dissesse que são menos de 0,01%. É que um por cento de deserções, com a guerra já ganha e os alemães em completa retirada até seria um valor extremamente alto. (p230) Roosevelt não faleceu no início de 1945 como diz Barone mas em 12 de Abril, apenas umas semanas antes do próprio Hitler. (p242) a descrição do levantamento (ou "levante" na forma brasileira) de Varsóvia "que ajudaria a expulsar os nazistas do país e ao mesmo tempo serviria para intimidar a ocupação soviética" está francamente mal explicado. Naquele momento da guerra o objectivo era mesmo a expulsão dos nazis. A tal ajuda que não veio era precisamente dos soviéticos, que atrasaram o seu avanço para dar tempo aos alemães de destruirem totalmente a rebelião. Tirando Churchill que se apercebeu muito cedo das intenções soviéticas, muito poucos foram os que fizeram algo para o evitar. Nota especial para a liderança americana que em momento algum viu nos soviéticos os seus futuros inimigos.

Muitos destes problemas poderiam ter sido resolvidos com uma revisão mais profissional antes do texto ser publicado. Enquanto escritor amador (blogger) compreendo perfeitamente que é normal dar erros ridículos, mas um livro em papel não é uma página da internet que é imediata e facilmente corrigível. Um livro, depois de publicado é um projecto fechado e não pode ser lançado numa versão draft.

Numa nota mais positiva, apreciei muito do que aprendi sobre a participação brasileira, sobre a complicada posição política do governo Vargas (lutando ao lado das grandes democracias quando ele próprio era uma ditadura de inspiração fascista), até da absoluta impreparação das forças brasileira que chegaram à frente ainda sem armas (fez-me lembrar Portugal na Grande Guerra) e o pós-guerra dos pracinhas com o silenciamento das suas experiências. O trabalho que João Barone está a fazer é relevante e é necessário que alguém consiga fazer esta ligação entre os historiadores académicos e um público mais vasto. O seu estilo mais leve é importante, mas terá que se preparar melhor no futuro se pretende avançar novamente para uma obra desta envergadura.