Book Review
Não será fácil pegar em notas de um correspondente de guerra, nas cartas que escreveu para a família, em artigos de jornal e comentários de amigos e colegas e conseguir compôr a história da segunda guerra mundial, mas foi precisamente isso que Antony Beevor fez com o romancista e correspondente de guerra russo Vasily Grossman.
Grossman trabalhava em 1941 para o jornal do exército vermelho, Krasnaya Zvezda, e cobriu o que estes chamaram de "A Grande Guerra Patriótica" desde a Operação Barbarossa até à batalha por Berlim. Pelo meio, cobriu das linhas da frente batalhas que passaram por Estalinegrado, Kursk, Kiev, Varsóvia entre muitas outras. Foi ainda um dos primeiros jornalistas a entrar em Treblinka.
Nunca chegou a pertencer ao Partido Comunista da União Soviética. Embora tenha ficado famoso com os seus artigos e com os romances que escreveu durante e depois da guerra, este judeu secular não era apreciado por Stalin, que vetou a sua obra quando a URSS se preparava para lhe dar a mais alta condecoração literária do país.
Grossman não tem uma especial percepção das grandes questões da guerra, dos grandes movimentos militares e dos bastidores diplomáticos, mas é brilhante na forma como descreve história do homem comum, do soldado ou do civil apanhado pela guerra. Este correspondente descreve a batalha de Estalinegrado sem se referir a Stalin uma única vez. Os seus artigos eram numerosas vezes alterados ou censurados por não estarem de acordo com as políticas de propaganda do partido. As suas notas pessoais, se alguma vez tivessem sido descobertas pela NKVD (a polícia secreta, que mais tarde se veio a tornar no KGB) o seu destino estaria traçado. O simples facto de ser judeu valeu-lhe a perseguição política nos últimos anos de vida de Stalin, quando o anti-semitismo se tornou política de estado depois do caso dos médicos judeus acusados de conspirar para assassinar os líderes políticos soviéticos. Muitos dos seus colegas que com ele lutaram para que os crimes que os Nazis praticaram contra o povo judeu fossem conhecidos, foram enviados para os gulags ou assassinados pela NKVD. Vasily viu todos os seus livros retirados do mercado e o seu nome atirado para o esquecimento.
Para o regime estalinista, nenhum crime em especial fora cometido contra os judeus. Os crimes tinham sido cometidos contra cidadãos da União Soviética. Em algum momento admitiam a existência de alvos preferenciais. Também não era do interesse do regime aceitar as culpas de muitos ucranianos no holocausto nazi. A Ucrânia sofrera terrivelmente com as fomes e purgas causadas por decisões do governo de Moscovo e em muitos casos os ucranianos receberam a Wehrmacht como libertadores. Os muitos judeus da região não tiveram noção do que se aproximava, não só porque o avanço nazi foi demasiado rápido para que as cidades pudessem ser devidamente defendidas ou sequer evacuadas, mas também porque devido à política de controlo dos media, o cidadão comum da URSS não tinham qualquer noção de que os nazis viam nos judeus a raiz de todos os males. Isto era o resultado do pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, em que os ministros dos negócios estrangeiros da União Soviética e do III Reich dividiram a Polónia entre os dois impérios. Desde essa data até ao ataque surpresa de 1941 os dois países mantinham uma aliança comercial contra-natura mas extremamente bem sucedida.
Tal como os seus concidadãos, Grossman não se apercebe do que está a acontecer. Lentamente, depois da batalha de Stalingrado, quando o Exército vermelho começa a recuperar o território perdido, os crimes nazis começam a ser conhecidos. Este escritor recolhe os testemunhos dos sobreviventes, dos generais e dos soldados razos e a imagem do holocausto forma-se de forma cada vez mais clara. O próprio, sendo judeu, teme durante todo o tempo pela vida da mãe, que sendo judia em território ocupado tinha poucas hipóteses de sobrevivência.
Vasily Grossman não é um espectador. Em várias situações apercebemos-nos que terá pegado em armas, que a escrita não era suficiente. Também não é neutro. Aparenta ser um apoiante sério, mas não fanático, do projecto soviético, mas com a andar do tempo o afastamento é cada vez mais óbvio. Nas suas notas pessoais podem-se encontrar inúmeras descrições dos crimes de violação, saque e homicídio cometidos pelo Exército Vermelho. Era também extremamente crítico da forma como as chefias atiravam homens mal preparados para a morte. Tinha uma admiração enorme pelos homens comuns que se transformavam em heróis durante as grandes batalhas, e estes retribuiam-lhe com confiança e carinho. Grossman ajudou a elevar a um estatuto mítico os aviadores russos, que abalroavam os Stukas alemães em acções que roçavam o suicídio, das Bruxas da Noite (as mulheres piloto que faziam bombardeamentos noturnos e entrega de mantimentos nos seus biplanos), os atiradores furtivos (o filme Enemy at the Gates[1] é baseado em parte em algumas das descrições de Vasily), dos pilotos dos barcos de transporte do Volga cuja esperança de vida no lugar se media em semanas e, já no final da guerra, as tripulações dos imparáveis tanques T-34 e dos modernos Katyushas no seu avanço sobre o Reich.
Beevor consegue organizar e encaixar de forma elegante todas estas notas, cartas e artigos formando um livro completo e emocionante. Na retina fica a melhor descrição que já li ou vi da batalha Estalinegrado, uma que figurará certamente nas mais importantes batalhas alguma vez travadas e do qual acabamos por saber tão pouco já que foi travada entre duas potências cujos media estavam totalmente dependentes da propaganda dos respectivos estados.
Título: Um Escritor Na Guerra
Subtítulo: Vasily Grossman com o Exército Vermelho 1941-1945
Autor: Antony Beevor e Luba Vinogradova
Editora: Edições 70
Não será fácil pegar em notas de um correspondente de guerra, nas cartas que escreveu para a família, em artigos de jornal e comentários de amigos e colegas e conseguir compôr a história da segunda guerra mundial, mas foi precisamente isso que Antony Beevor fez com o romancista e correspondente de guerra russo Vasily Grossman.
Grossman trabalhava em 1941 para o jornal do exército vermelho, Krasnaya Zvezda, e cobriu o que estes chamaram de "A Grande Guerra Patriótica" desde a Operação Barbarossa até à batalha por Berlim. Pelo meio, cobriu das linhas da frente batalhas que passaram por Estalinegrado, Kursk, Kiev, Varsóvia entre muitas outras. Foi ainda um dos primeiros jornalistas a entrar em Treblinka.
Nunca chegou a pertencer ao Partido Comunista da União Soviética. Embora tenha ficado famoso com os seus artigos e com os romances que escreveu durante e depois da guerra, este judeu secular não era apreciado por Stalin, que vetou a sua obra quando a URSS se preparava para lhe dar a mais alta condecoração literária do país.
Grossman não tem uma especial percepção das grandes questões da guerra, dos grandes movimentos militares e dos bastidores diplomáticos, mas é brilhante na forma como descreve história do homem comum, do soldado ou do civil apanhado pela guerra. Este correspondente descreve a batalha de Estalinegrado sem se referir a Stalin uma única vez. Os seus artigos eram numerosas vezes alterados ou censurados por não estarem de acordo com as políticas de propaganda do partido. As suas notas pessoais, se alguma vez tivessem sido descobertas pela NKVD (a polícia secreta, que mais tarde se veio a tornar no KGB) o seu destino estaria traçado. O simples facto de ser judeu valeu-lhe a perseguição política nos últimos anos de vida de Stalin, quando o anti-semitismo se tornou política de estado depois do caso dos médicos judeus acusados de conspirar para assassinar os líderes políticos soviéticos. Muitos dos seus colegas que com ele lutaram para que os crimes que os Nazis praticaram contra o povo judeu fossem conhecidos, foram enviados para os gulags ou assassinados pela NKVD. Vasily viu todos os seus livros retirados do mercado e o seu nome atirado para o esquecimento.
Vasily Grossman durante a Segunda Guerra Mundial |
Para o regime estalinista, nenhum crime em especial fora cometido contra os judeus. Os crimes tinham sido cometidos contra cidadãos da União Soviética. Em algum momento admitiam a existência de alvos preferenciais. Também não era do interesse do regime aceitar as culpas de muitos ucranianos no holocausto nazi. A Ucrânia sofrera terrivelmente com as fomes e purgas causadas por decisões do governo de Moscovo e em muitos casos os ucranianos receberam a Wehrmacht como libertadores. Os muitos judeus da região não tiveram noção do que se aproximava, não só porque o avanço nazi foi demasiado rápido para que as cidades pudessem ser devidamente defendidas ou sequer evacuadas, mas também porque devido à política de controlo dos media, o cidadão comum da URSS não tinham qualquer noção de que os nazis viam nos judeus a raiz de todos os males. Isto era o resultado do pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, em que os ministros dos negócios estrangeiros da União Soviética e do III Reich dividiram a Polónia entre os dois impérios. Desde essa data até ao ataque surpresa de 1941 os dois países mantinham uma aliança comercial contra-natura mas extremamente bem sucedida.
Tal como os seus concidadãos, Grossman não se apercebe do que está a acontecer. Lentamente, depois da batalha de Stalingrado, quando o Exército vermelho começa a recuperar o território perdido, os crimes nazis começam a ser conhecidos. Este escritor recolhe os testemunhos dos sobreviventes, dos generais e dos soldados razos e a imagem do holocausto forma-se de forma cada vez mais clara. O próprio, sendo judeu, teme durante todo o tempo pela vida da mãe, que sendo judia em território ocupado tinha poucas hipóteses de sobrevivência.
Vasily Grossman não é um espectador. Em várias situações apercebemos-nos que terá pegado em armas, que a escrita não era suficiente. Também não é neutro. Aparenta ser um apoiante sério, mas não fanático, do projecto soviético, mas com a andar do tempo o afastamento é cada vez mais óbvio. Nas suas notas pessoais podem-se encontrar inúmeras descrições dos crimes de violação, saque e homicídio cometidos pelo Exército Vermelho. Era também extremamente crítico da forma como as chefias atiravam homens mal preparados para a morte. Tinha uma admiração enorme pelos homens comuns que se transformavam em heróis durante as grandes batalhas, e estes retribuiam-lhe com confiança e carinho. Grossman ajudou a elevar a um estatuto mítico os aviadores russos, que abalroavam os Stukas alemães em acções que roçavam o suicídio, das Bruxas da Noite (as mulheres piloto que faziam bombardeamentos noturnos e entrega de mantimentos nos seus biplanos), os atiradores furtivos (o filme Enemy at the Gates[1] é baseado em parte em algumas das descrições de Vasily), dos pilotos dos barcos de transporte do Volga cuja esperança de vida no lugar se media em semanas e, já no final da guerra, as tripulações dos imparáveis tanques T-34 e dos modernos Katyushas no seu avanço sobre o Reich.
Beevor consegue organizar e encaixar de forma elegante todas estas notas, cartas e artigos formando um livro completo e emocionante. Na retina fica a melhor descrição que já li ou vi da batalha Estalinegrado, uma que figurará certamente nas mais importantes batalhas alguma vez travadas e do qual acabamos por saber tão pouco já que foi travada entre duas potências cujos media estavam totalmente dependentes da propaganda dos respectivos estados.
Título: Um Escritor Na Guerra
Subtítulo: Vasily Grossman com o Exército Vermelho 1941-1945
Autor: Antony Beevor e Luba Vinogradova
Editora: Edições 70