terça-feira, 18 de novembro de 2014

O que correu mal?

Escrito por aquele que será o mais famoso historiador orientalista do pós-segunda guerra, Bernard Lewis, "What went wrong?" é um livro curto que retrata a lenta decadência do mundo árabe desde o início do seu confronto com a modernidade ocidental, geralmente considerada como a invasão do Egipto por Napoleão Bonaparte. 

Este historiador britânico/americano ainda vivo e do topo dos seus 98 anos é famoso pelas suas visões do Médio Oriente e o conhecimento do Império Otomano, um dos mais interessantes temas da região, no que toca aos últimos 500 anos.

A sua visão é relativamente clara: o mundo islâmico, tendo estado nos primeiros séculos depois da vinda do profeta Mohamed em ascensão constante, vem perdendo força e importância a todos os níveis. Com o fim da idade média, as melhorias técnicas e científicas, a capacidade militar e a organização social do ocidente vão ganhando terreno e quando finalmente confrontadas em larga escala, mostraram estar muito acima das capacidades do que o mundo do Islão conseguia agregar.

Infelizmente, embora repleto de pequenas histórias interessantíssimas e factos e testemunhos que guardarei com cuidado, o livro "What went wrong?" tem profundas falhas. Talvez a mais grave é o tratamento da parte pelo todo e do todo pela parte, o que acontece constantemente ao longo do livro e de forma a que os dados contribuam sempre para a pré-definida conclusão. Por exemplo, a primeira metade do livro é praticamente toda dedicada ao Império Otomano, sendo este comparado sucessivamente com os Impérios Britânicos, Franceses e Russos. No entanto, em múltiplos casos, Lewis salta subitamente desse mundo pré-primeira guerra mundial para comparações do mundo islâmico com os Estados Unidos da América pós-segunda guerra mundial. Ou seja, numa altura em que quer o Império Britânico quer o Império Francês já tinham desaparecido e estes países - tal como a nova Turquia republicana - reduzidos a estados de média dimensão com projecção diplomática e cultural mas sem peso nas grandes decisões do mundo.

Por outro lado, Bernard Lewis reduz o mundo islâmico à pequenas partes deste. Para além do Império Otomano existiam e existem centenas de milhões de muçulmanos espalhados por outros estados, muitos deles em maioria. Considera, para além disso, o Islão como única e fundamental variável para explicar o diferente avanço de cada um dos povos, o que me parece profundamente redutor e que contraria profundamente o que vemos no nosso dia-a-dia no Médio Oriente.

Para convencer o seu público da inabilidade do mundo islâmico, diz-nos que um pequeno país como a Finlândia tem mais exportações do que o mundo árabe tirando o petróleo e derivados. Abstem-se de dizer no entanto que essa Finlândia (o livro foi publicado em 2002) era a sede da Nokia, na altura uma das maiores e mais bem sucedidas empresas do mundo[1]. Em 2000 já representava sozinha 70% do seu mercado de capitais e 21% das exportações do país. Continuou a crescer até chegar aos 41% do mercado mundial de telemóveis. Ao retirar o petróleo da equação, retirou das contas aquele que é o verdadeiro motivo do boom do Médio Oriente, para além de discretamente saltar do mundo islâmico para o mundo árabe, o que retira imediatamente algumas das maiores economias do mundo islâmico, como a Turquia e a Indonésia, ambas economias muito mais diversificadas do que os estados construídos nos inóspitos desertos da península arábica ou no extremo norte do deserto do Sahara.

Bernard Lewis também parece prender-se excessivamente na ideia de que as vitórias militares são suficientes para provar o nível civilizacional de um povo, uma ideia que contesto. Basta olhar para as vitórias dos Mujahedeen sobre os soviéticos, dos Vietcong sobre os Americanos ou da Alemanha Nazi sobre a República Francesa para perceber que existe muito mais para além de guerra, quando queremos definir o nível civilizacional de um povo. Se o Império Otomano, que ele tão bem conhece não estava à altura dos exércitos europeus, por outro lado tinha uma capacidade de integração de minorias étnicas que - a meu ver - deveria ser ainda hoje um caso de estudo cuidado. Basta ver que aos séculos de relativa paz nas mãos dos Otomanos seguiram-se décadas de conflitos constantes aos quais nem as novas superpotências souberam resolver. A situação aliás, só parece piorar com cada nova tentativa de intervenção ocidental.

Outro factor que Lewis não tem em conta refere-se precisamente à influência e intervenção directa do resto do mundo. É extremamente interessante que alguém consiga olhar para o Médio Oriente e não perceber o quanto as potências estrangeiras conseguiram destruir, pilhar e influenciar. Não que todos os problemas sejam exógenos, longe disso. Mas não é possível deixá-los de fora. Curiosamente, Bernard Lewis era um conselheiro da administração Bush, cuja intervenção no Médio Oriente - em especial no Iraque em 2003 - é ainda hoje um dos grandes motivos de ressentimento dos árabes em relação aos Estados Unidos, ao mesmo nível do apoio a Israel e dos golpes patrocinados pela CIA (como o de Mosadegh, no Irão em 1953).

O grande defeito do livro é começar pelo fim, ou seja, por ter uma conclusão definida à qual os dados teriam que encaixar. "O que correu mal?" já pressupõe que tudo correu mal, colocando no mesmo saco estados falhados como o Afeganistão, o Iraque ou a Líbia com alguns dos países mais ricos e seguros do mundo, como os Emirados Árabes Unidos, o Qatar ou o Kuwait. Para além disso, esse mesmo título podia ser utilizado para falar da ascensão e queda de todos os impérios, como o Britânico, o Françês, o Português ou o Japonês.

O mundo islâmico tem de facto um desafio enorme para adaptar muitos dos hábitos ocidentais sem colocar em causa as suas raizes religiosas e culturais. A velha discussão sobre modernidade vs ocidentalidade. É algo porque todos os povos são confrontados diariamente. Diferentes partes desse mundo islâmico trataram o assunto de forma diferente com soluções que passaram desde o secularismo total da Turquia, à semi-democracia teocrática do Irão, à teocracia monárquica da Arábia Saudita, dependendo das suas próprias experiências, dos seus recursos e das suas alianças com os grandes poderes dos mundo.

Posso não concordar com muitas das interpretações do livro, mas isso não altera o prazer que tive a lê-lo e o muito que aprendi sobre o passado e presente desta região.



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