terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Verdadeiro Muçulmano: Quem decide?

Talvez o mais interessante fenómeno da relação entre o Ocidente e o mundo
Islâmico está na forma como os ocidentais reduzem toda a complexidade e variedade de Muçulmanos num essencialismo absoluto. Os Muçulmanos são, por definição ocidental, única e exclusivamente Muçulmanos. Nesta visão extrema, nenhuma outra variável nas suas vidas, nas suas personalidades, na sua genética ou na história da sua nação tem qualquer significado.

O recente caso do ataque terrorista do Charlie Hebdo, em Paris, permitiu-nos ver a facilidade com que os mais de mil milhões de Muçulmanos foram acusados do ataque. Os criminosos, deixaram de ser franceses para serem "nascidos em França"[1]. Pelo contrário, o polícia  Ahmed Merabet que morreu in the line of duty, enquanto protegia as instalações do jornal Charlie Hebdo, tornou-se uma espécie de "mais Francês e menos Muçulmano". Altamente inconveniente para os que gostam de uma visão maniqueísta e infantil do mundo. Tão inoportuno como os muitos milhares de muçulmanos que se juntaram às manifestações de 11 de Janeiro[2]. Nem mesmo a Bernard-Henri Lévy, famoso filósofo Francês e influente Judeu[3], conhecido crítico do islamismo militante que nesse dia era convidado de Christiane Amanpour na CNN. 

Porque é tão difícil compreender que existam no Islão milhões de pessoas com diferentes prioridades, que olham para a sua religião - e para as restantes - de diversas formas? Que existem pessoas dispostas a matar e morrer por Allah como existem milhões que acordam e adormecem a pensar no futuro dos seus filhos, na felicidade da sua família ou nas contas do supermercado? Que estaremos mais perto de os compreender se os imaginarmos que rigorosamente iguais a nós do que se os considerarmos  como radicalmente distintos? Porque motivo são os Ocidentais que julgam estar em posição de decidir quem é o "Verdadeiro Muçulmano", renegando a esmagadora maioria para uma classe lateral de "moderados", como se fossem menos Muçulmanos do que os outros.

Existem inúmeros criminosos que matam em nome do Islão, utilizando uma visão moderna e violenta desta religião. São um perigo para a humanidade e têm que ser controlados, capturados, des-radicalizados e, se não houver outra hipótese, mortos. Em nada diferente dos que há umas décadas atrás matavam em nome do comunismo ou do nazismo por toda a Europa. 

Todos sabemos como na História, os inimigos são demonizados vezes sem conta, numa tentativa de endurecer os militares e as populações de quem eles dependem em última instância. O que é estranho é que todos saibamos disso e continuemos a cair na mesma esparrela. Vezes e vezes sem conta. 

E relembro as palavras de Sting, no seu "Russians" de 1985, quando a Guerra Fria parecia que nunca iria acabar. Ainda tão actual...

Russians


In Europe and America

There's a growing feeling of hysteria

Conditioned to respond to all the threats

In the rhetorical speeches of the Soviets

Mister Khrushchev said, "We will bury you"
I don't subscribe to this point of view
It'd be such an ignorant thing to do
If the Russians love their children too

How can I save my little boy
From Oppenheimer's deadly toy?
There is no monopoly of common sense
On either side of the political fence

We share the same biology
Regardless of ideology
Believe me when I say to you
I hope the Russians love their children too

There is no historical precedent
To put the words in the mouth of the president?
There's no such thing as a winnable war
It's a lie we don't believe anymore

Mister Reagan says, "We will protect you"
I don't subscribe to this point of view
Believe me when I say to you
I hope the Russians love their children too

We share the same biology
Regardless of ideology
What might save us, me and you,
Is if the Russians love their children too


sábado, 24 de janeiro de 2015

Califado em Paris

Steven Emerson, auto-proclamado especialista em assuntos dos Médio Oriente e terrorismo islâmico, afirmou esta semana no canal americano Fox News que várias partes de Paris são "no-go-zones" para não-muçulmanos, que isso é comum pela Europa fora com Polícia islâmica Sharia nas ruas e que a cidade de Birmingham (Reino Unido) era 100% muçulmana e onde os não-muçulmanos estão impedidos de entrar[1][2]. O genial comentário levou a uma enorme risada por toda a Europa, um processo em tribunal por parte da cidade de Paris e o inequívoco comentário do Primeiro-Ministro David Cameron de que Emerson é "claramente um completo idiota"[3].

Mas ultrapassando a profundidade de 140 caracteres, a situação é de facto bastante mais grave do que as primeiras gargalhadas nos levam a fazer crer. Steven Emerson não cometeu um lapso momentâneo, resultado das dificuldades e pressões de falar em directo para uma enorme audiência. O que ele afirmou não só é absolutamente irreal mas é algo que ele defendeu consistentemente no seu próprio site, na Fox News em múltiplas entrevistas. A Fox, tornou-se ela própria um antro onde as mais absurdas ideias podem ser defendidas para uma audiência de milhões sem qualquer contraditório e só mesmo o clamor global destas afirmações "over the top" é que levaram ao invulgar pedido de desculpas da estação e do próprio. O mais perigoso de tudo isto, defendo eu, é que este acontecimento não é excepcional, nem inédito, nem inconsequente, o que se revela bastante mais perigoso.

Não é excepcional nem inédito porque Emerson já tinha defendido estas ideias anteriormente, o que significa que não foi um acto irrefletido mas algo que vem defendendo, e sido defendido também por outros (como o governador do Louisiana Bobby Jindal[4] ou a própria entrevistadora Jeanine Pirro que o acompanha e com quem mostra absoluta concordância ou o anterior convidado a que se refere[5]) e que pela força dos mass media vai entrando no "conhecimento" comum, mesmo que não tenha qualquer relação com a realidade.

Aliás, no mesmo comentário, Steven Emerson resolve ir mais longe e afirmar que a Turquia "é um porto seguro para os líderes do Hamas que coordena ataques contra Israel". Acrescenta depois que as mulheres terroristas treinaram no Médio Oriente onde fizeram ataques terroristas misturando depois esta história com a ideia de que o Reino Unido é um lugar onde "em alguns aeroportos - acreditem ou não - elas não precisam de retirar as burkas para serem identificadas pelos controladores dos passaportes". Mais uma afirmação que recebe o intenso apoio de Jeanine Pirro, que confirma que também já o viu. Não faço ideia de que aeroportos eles têm utilizado, mas como frequentador regular de praticamente todos os grandes aeroportos da Europa e Médio-Oriente, nunca vi tal coisa. Mesmo em países onde o hijab e o nikab são habituais, como os Emirados Árabes Unidos, as mulheres têm que mostrar a cara no controlo de passaportes. Têm usualmente também uma espécie de cabine onde podem mostrar a uma mulher polícia em privado se o desejarem. Mas certamente não passam sem serem identificadas, isso é um absurdo e representaria um buraco gigante na segurança de qualquer país. A minha experiência certamente terá as suas limitações, mas já devo ter feito pelos menos uma centena de controlos de passaportes entre Lisboa, Paris, Heathrow (Londres), Frankfurt, Amsterdão, Bruxelas, Istambul, Dubai, Abu Dhabi, Sharja, Aman, Tel Aviv, etc. Convido os meus leitores com experiência nas regiões em causa (Europa e Médio Oriente) a revelarem se alguma vez viram algo parecido com o que Emerson descreve.

Mas se as alegações de um lunático para uma audiência de milhões já são perigosas, muito mais ficam quando descobrimos que não é só na televisão que as suas mal fundamentadas - senão factualmente erradas - opiniões são recebidas. Para além de uma série de livros escritos sobre os temas do terrorismo e do Islão, foi considerado pelo New York Times como "um especialista em intelligence" e pelo New York Post como "o maior especialista de terrorismo no jornalismo nacional"[6]. Mas o verdadeiro arrepio na espinha acontece quando vemos que foi chamado a inúmeros comités do Congresso dos Estados Unidos, tais como vários de segurança internacional; terrorismo, tecnologia e informação governamental; imigração; judiciário e segurança nacional. Sabendo que os governantes e legisladores americanos ouviram especialistas do calibre de Steven Emerson para os ajudar a tomar decisões como a invasão do Afeganistão e do Iraque, os bombardeamentos com drones no Paquistão ou Yemen, ou como reagir à Primavera Árabe, ajuda a explicar muita coisa.

Não posso esquecer um nome que soava na minha mente enquanto via os vídeos, transcrições e outros sites relacionados com este caso: Edward Said. Se estivesse vivo reconheceria neste ridículo momento de Emerson o expoente máximo do Orientalismo, essa ciência feita de autores que vivem de se confirmarem mutuamente, sem qualquer preocupação com a realidade dos factos. Said aliás, numa entrevista publicada em Agosto de 2001, falava precisamente deste dizendo que "o terrorismo tornou-se numa espécie de imagem criada no final da Guerra Fria por legisladores em Washington assim como um grupo de pessoas como Samuel Huntington e Steven Emerson, que fazem o seu ganha-pão nessa procura. É uma invenção para manter a população receosa e insegura, e para justificar o que os EUA quer fazer globalmente".

Na verdade parece-me que o Islão está hoje, aos olhos de muitos no Ocidente, num processo de "norte-coreianismo", onde o povo aceita com um olhar crédulo toda e qualquer alegação feita sobre "os outros". Achei espectacular a forma como tantos jornais de referência (ou nem por isso...) pelo mundo fora publicaram a história de que o tio do líder norte-coreano Kim Jong Un tinha sido executado por grupo de cães esfaimados. Desde a Fox[7] e a NBC[8] até a jornais mais populares, muitos aceitaram sem qualquer oposição ou descrença as afirmações de um blog perdido na China. Também em relação ao Islão, alguns opinion makers parecem acreditar que podem dizer o que lhes vier à cabeça que ninguém colocará em causa. Em entrevista à BBC[9], Emerson procura aceitar as culpas e alega que as suas fontes estariam erradas, mas recusa-se terminantemente a revelar quem são as fontes. Atrevo-me a dizer que não existem fontes nenhumas, a não ser que conversas de pub ou vídeos de propaganda do You Tube também contem como tal. 

Esperemos que esta gaffe possa trazer algum juízo a quem publica. Todos cometemos erros e nem sempre as nossas fontes são as melhores, mas como é que alguém consegue chegar à televisão e dizer que "a Europa está acabada" porque tem inúmeras "no-go-zones" e tribunais sharia?[10] 

Nota: A imagem não é photoshop. É mesmo MS Paint.




quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Religião e Liberdade

2013 Hollande visita a Arábia Saudita
"Existem dois tipos de pessoas: as que têm cérebro, mas não têm religião; e as que têm religião mas não têm cérebro" são as famosas palavras do filósofo Árabe Abu al-Ala' al-Maarii[1]. Se ele fosse Saudita e vivesse nos dias de hoje, estaria a ser chicoteado em praça pública como o blogger Raif Badawi[2] ou correndo o risco de pena de morte[3], no entanto todos pudemos ver o ministro dos negócios estrangeiros Saudita a cumprimentar o presidente de França na sequência dos ataques ao jornal satírico francês, Charlie Hebdo.

O que é curioso na frase com que iniciei este texto, é que foi escrita há mais de um milénio em pleno mundo árabe e muçulmano, na Síria, o seu autor recebia inúmeros estudantes, viveu e viajou em liberdade e morreu com 85 anos na sua terra natal. Como descreve o jornalista Egípcio-Belga Khalid Diab num seu recente e iluminado artigo na Al Jazeera[3], a liberdade de expressão de que gozavam os cidadãos do mundo Árabe durante os primeiros séculos da sua expansão deveriam fazer corar de vergonha muitos líderes árabes nossos contemporâneos, nomeadamente o governo Saudita, auto-proclamados protectores da fé islâmica e seguidores do exemplo de Mohammed e os primeiros califas. 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Cruel aproveitamento político

Ainda os restos mortais dos infelizes jornalistas da magazine francesa Charlie Hebdo não tinham esfriado, já o aproveitamento político por parte das mais variadas forças políticas se tinha iniciado. 

A direita europeia mais islamófoba viu neste ataque terrorista a prova final de que o Islão é contra a liberdade de expressão e que não passa de uma religião violenta sem qualquer respeito pela diferença, pela crítica e até pela sátira. Durante os próximos dias, o habitual circo mediático irá provavelmente levar a mais ou menos dissimulados pedidos de guerra, imigração limitada e baseada em racial profiling, e novas explosões de nacionalismo que certamente beneficiará a extrema direita.

Curiosamente, as mesmas pessoas que consideram estes terroristas como fieis representantes dos mil milhões de muçulmanos do mundo, escolhem não reparar nas vítimas muçulmanas. Neste atentado, por coincidência, um dos polícias que faleceu era Ahmed Merabet, françês muçulmano, baleado e depois executado a sangue frio. Em toda a violência do extremismo islâmico, as vítimas em maior número são precisamente os muçulmanos como demonstram os estudos intensivos do programa START (GTD - Global Terrorism Database) da Universidade de Maryland, o maior nesse campo. No Iraque, Argélia, Líbia, Síria, Yemen, Nigéria, Somália, Afeganistão, Paquistão e tantos outros são os muçulmanos as principais vítimas de organizações como o ISIS, Al Qaeda, Taliban, Boko Haram, Al Shabab e muitos outros. No entanto, no Ocidente preferimos sempre considerar os criminosos como representativos destas sociedades, e não as suas vítimas. 

Do outro lado, a esquerda radical europeia não se comporta melhor, vendo sempre apenas o contexto e procurando a absoluta desresponsabilização do indivíduo. A pitoresca Ana Gomes, deputada socialista portuguesa no Parlamento Europeu, partilhou imediatamente um tweet responsabilizando as políticas europeias de austeridade por este acontecimento. Considerar que jovens franceses, que vivem com um estado social e protecção política, religiosa e económica como têm em França, são empurrados para um acto destes pela força da crise é um absurdo. O que eles fizeram não é um acto de desespero de quem não tem saídas, mas sim uma escolha muito clara do que querem para si e para o seu país.

Mas acima de tudo, este foi um ataque à liberdade de imprensa, de opinião e de pensamento. E é aí que temo que serão causados grandes danos. Numa escala diferente o 11 de Setembro mostrou-nos como uma unanimidade global de solidariedade foi rapidamente utilizada para lançar guerras, reduzir direitos civis e até legitimar tortura. Aos 3000 mortos iniciais, somaram-se centenas de milhares de outros no Afeganistão e no Iraque durante mais de uma década, num processo que ainda não finalizou.

Quanto a mim, o único tributo que possa realmente prestar a estes jornalistas e aos polícias que morreram tentando defendê-los é continuar a escrever a minha opinião de forma livre, quer agrade quer desagrade aos meus leitores, e esperar que aqueles que diariamente espalham ódio, vingança e ameaças nestas páginas possam um dia encontrar paz no coração e liberdade no pensamento.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Netanyahu, de que tens medo?

Depois de ver negado o seu pedido de independência no Conselho de Segurança das Nações Unidas por um voto, a Palestina entregou a documentação para integrar o Tribunal Criminal Internacional (ICC) em Hague. A resposta do Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu não se fez esperar: reteve os impostos dos palestinianos (que Israel cobra em nome da Palestina) e já informou publicamente que nenhum soldado israelita "será arrastado para o ICC".

Depois de tantas acusações que fez no passado dos crimes de guerra do Hamas, da Fatah, da PFLP ou da DFLP, é difícil compreender porque motivo Bibi está tão preocupado. Isto deveria ser uma excelente oportunidade para colocar tudo em pratos limpos. Eu não tenho dúvidas de que o Hamas teria (terá?) muitas dificuldades em explicar muitas das suas acções. Pelos vistos, Netanyahu também não se sentirá muito confortável em aclarar as suas...

Médio Oriente: Religião e Petróleo

Grande parte do mundo acredita que a alma do Médio Oriente está na sua religião, o elemento essencial e distintivo do povo e cultura locais. Isto acontece desde os grandes téoricos orientalistas, como Bernard Shaw, até aos populares que muitas vezes não conseguem distinguir um turbante Sikh indiano de um keffyeh palestiniano. Ao contrário de outras partes do mundo, como a Inglaterra ou Portugal, onde a esmagadora maioria dos seus cidadãos têm a mesma religião ou não professa qualquer religião, praticamente todos os países do Médio Oriente têm multiplas religiões, com enormes minorias melhor ou pior representadas e muitas vezes até no poder.

Muitos dos conflitos são rapidamente reduzidos pelos comentadores internacionais aos seus aspectos religiosos, cuja importância é colocada bem acima de outros factores étnicos, políticos ou sociais. No entanto, algumas destas visões simplistas são postas em causa quando olhamos para os problemas um pouco mais de perto. Se a religião é muitíssimo importante, não é certamente o único factor relevante e em muitos casos acredito que nem será o factor central do problema.

Na Palestina, Muçulmanos e Cristãos lutam lado a lado contra Judeus, onde dois passados diferentes e extremamente violentos - o da Nakba para os Palestinianos e o Holocausto para os Judeus - unem mais do que a própria religião. A PFLP (Popular Front for the Liberation of Palestine), organização terrorista e de extrema esquerda, responsável por muitos ataques de pirataria aérea e bombistas suicidas durante os anos 70, foi fundada e era liderada por um palestiniano cristão, George Habash, ele próprio um sobrevivente da Nakba. Os seus ataques continuam até ao presente, tendo sido o último em Novembro de 2014, num ataque a uma sinagoga onde morreram quatro fieis Judeus e um polícia Druze, para além de sete outros feridos. Naturalmente que os ataques bombistas suicidas cometidos por uma organização comunista liderada por cristãos não encaixa naa propagandeadaa ideias das 42 virgens no céu, mas contra factos não há argumentos. Também o casamento de Arafat com Suha Tawil, uma palestiniana cristã 34 anos mais nova, em 1990 vai contra a ideia dos palestinianos serem todos muçulmanos fanáticos, principalmente quando poucos anos depois Yasser Arafat ganha umas eleições limpas com 88% dos votos.

No Iraque, a organização terrorista Daesh (also known as ISIS, ISIL, Estado Islâmico ou Califado Islâmico) tem como principal adversário as forças paramilitares Curdas - os Peshmerga - igualmente sunitas, mas unidas pela língua e pelo sonho antigo de ter o seu próprio país, o Curdistão, adiado desde o fim do Império Otomano pelos poderes regionais e internacionais durante um século. Também aqui a religião parece explicar apenas um dos lados do conflito, mas não ambos. 

E por todo o Médio Oriente encontramos outros exemplos, como na Líbia onde uma guerra civil tribal e não religiosa continua a propagar-se sem fim à vista, na Síria onde uma coligação governamental com quase todas as minorias étnicas do país e até um grande número de Sunitas lutam contra o mesmo Daesh. No Yemen, onde a Primavera Árabe descambou numa guerra civil que mistura aspectos religiosos e étnicos. Ou até no Bahrain, onde é a falta de representação política e económica da maioria Shiita - e não algum aspecto dogmático religioso - que mantém uma situação de paz podre mantida apenas à custa de uma enorme influência saudita.

Ainda mais relevante do que a Religião, para compreender muito do que se passa no Médio Oriente, devemos olhar na minha opinião, para o Petróleo. Naturalmente, não serão os dois únicos factores a ter em conta e existirão outros que em muitas situações ajudaram a explicar o presente e o passado da região, tais como as invasões militares europeias e americanas, a colonização estrangeira, as guerras regionais, o nacionalismo árabe, outros nacionalismos (Curdo, Palestiniano), etc. Mas o petróleo é, e ainda será durante muito tempo, o combustível que faz rodar o planeta. Grande parte das suas reservas (assim como as de gás natural) estão no Médio Oriente, e são controladas por um pequeno número de países. A ascensão dos Estados Unidos e da Rússia ao topo dos produtores de petróleo, retirando a primeira posição à Arábia Saudita pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, é um factor de enorme importância e cujos impactos não podem ser substimados. Se somarmos a este facto, a recente queda do preço do petróleo cujo barril caiu em poucos meses do seu valor "normal" de 95 a 110 USD para os 50 a 60 USD, ficamos com uma espécie de tempestade perfeita no sector energético que terá ondas de choque políticas e económicas enormes, quer para a região quer para a relação das grandes potências globais.

Vivendo num país que é um dos grandes exportadores de petróleo, não estranho que o assunto seja tratado diariamente pelos media locais mas também pela população, que compreende a importância do petróleo para todos os que aqui vivem. Os governos dos países exportadores de petróleo terão que reduzir drásticamente as suas despesas ou incorrer em enormes déficits orçamentais, uma decisão que não é particularmente urgente para países como o Qatar, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita ou o Kuwait cujos fundos soberanos de centenas de milhares de milhões de dólares lhes permitem aguentar déficits durante muitos anos.     



Noutros lugares, como o Irão, a Venezuela ou a Rússia, situações orçamentais terão impactos muito mais sérios, mais violentos e obrigando a ajustamentos muito rápidos. Uma teoria interessante que anda nos media norte-americanos é a de que esta queda do petróleo seria provocada pelos Sauditas, numa tentativa de quebrar o Irão e os muito endividados produtores shale oil americanos. É um facto que a Arábia Saudita está em posição de aguentar o preço baixo e que na última reunião da OPEC defenderam (e conseguiram) que não fosse reduzida a produção de petróleo dos países do cartel, mas a verdade é que a Arábia Saudita já não é o maior produtor de petróleo do mundo. Caiu até para terceiro lugar. Quer os EUA quer a Rússia ultrapassaram o Reino. Fizeram-no com custos de exploração altíssimos (que chegam a vinte vezes o custo de produzir no Golfo Pérsico) e investimentos absurdos e arriscados. Agora, os dois líderes produtores procuram convencer o terceiro que existe demasiado petróleo no mercado e pedem-lhe se não se importa de reduzir as suas exportações, para que eles possam sobreviver. Estranha ironia.

Mas independentemente do que causou esta descida do preço, a verdade é que todos se preparam para ficar pelo menos um ou dois anos com preços entre os 40 e os 70 USD. E o Médio Oriente terá necessariamente de mudar. O Daesh depende do petróleo para continuar a sua jihad, o Irão para recuperar o seu lugar na comunidade internacional e levantar-se da crise económica dos últimos anos, as monarquias do Golfo para continuarem a sua ascensão económica e a manutenção de um garantismo estatal de outra forma impensável, o Iraque e a Síria para se levantarem (se é que o vão conseguir fazer na próxima década) e o Curdistão para chegar à tão ambicionada independência, agora que as suas forças militares têm o equipamento e experiência para defenderem o seu território e conquistaram o respeito do mundo ocidental, com as suas tropas mistas e uma sociedade inclusiva que protege as minorias étnicas e religiosos perseguidas pelo Daesh.