sexta-feira, 24 de maio de 2013

Inimigo às Portas

Filme

Uma das mais importantes batalhas na história da humanidade, a sangrenta defesa de Stalingrado pelas tropas soviéticas pararam o aparentemente imparável exército hitleriano. Nos anos anteriores, Áustria, Checoslováquia, Polónia, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, França, Dinamarca e Noruega cairam aos pés da Wehrmacht e ficaram sobre o controlo de Berlim. Em 1941, num ataque surpresa denominado Operação Barbarossa, as forças de Hitler e  seus aliados atacam a União Soviética com um exército de milhões de homens conseguindo em poucos meses tomar o que restava da Polónia, mais a Ucrânia, Bielorússia, Estónia, Letónia e Lituânia chegando mesmo às portas de Moscovo quando a neve, o frio, muito sangue russo e as formidáveis tropas siberianas os conseguiram parar. Uns meses depois, quando o cruel inverno russo passara e a força do contra-ataque russo já esmorecera, uma nova invasão iniciou-se, mas desta vez (e ao contrário do que Stalin acreditara) o objectivo não era a capital Moscovo, mas os poços petrolíferos do sul, onde a grande cidade modelo baptizada com o nome do ditador soviético dominava a região. É aqui, em Estalinegrado que os exércitos alemães encontram a sua primeira grande derrota.

Numa cidade totalmente arrasada pela artilharia de ambos os lados, dois exércitos lançam-se numa batalha nunca vista com milhões de homens a batalharem rua a rua, casa a casa, e muitas vezes até entre andares do mesmo edifício. Nesses meses intermináveis, os atiradores furtivos russos tornaram-se heróis nacionais, usados pela propaganda russa para mostrar o melhor das suas forças. "Enemy at the Gates"[1] é uma versão bastante romantizada de um destes snipers, Vassily Zaitsev[2], uma personagem histórica que abateu centenas de soldados inimigos durante a segunda guerra mundial.

Gostei muito de alguns detalhes históricos bastante realísticos do filme. Noutros casos, a arte cinematográfica claramente terá tido prioridade. A forma como os soldados eram atirados para a batalha sem qualquer tipo de preparação e muitas vezes sem arma é bastante realística. As armas eram distribuidas apenas a uma pequena parte dos soldados e era suposto os seguintes pegarem na arma à medida que o anterior caísse. Aconteceu em Stalingrado mas também em muitas outras batalhas, embora Hollywood normalmente prefira colocar armas nas mãos de todos os figurantes. No entanto eles não saltavam directamente do comboio para a frente de batalha, como é óbvio. Ainda tinham umas caminhadas pela frente e a travessia do rio Volga que aqui foi dramatizada com Stukas a fazerem voos picados passando a poucos metros dos barcos. Alguns sites mais especializados dizem-nos que se o fizessem a essas distâncias que o avião e a sua tripulação juntar-se-ia às vítimas da bomba. Mas não obstante o exagero, conseguem passar a imagem - muito verdadeira - das dificuldades que os soldados tinham para chegar ao campo de batalha. Outras queixas comuns em relação ao filme são os longos períodos de solidão no duelo entre o atirador soviético e o alemão. Num campo de batalha tão  pequeno, era de esperar que estivessem constantemente grandes números de soldados em acção por todo o lado.
Vasily Zaytsev, Outubro 1942 em Estalinegrado

Talvez pela primeira vez, vi num filme, a cruel mas verídica, segunda linha da NKVD. Esta linha encontrava-se umas centenas de metros atrás da principal frente de batalha e destinava-se a disparar sobre qualquer soldado soviético que tentasse retirar. 

Existe um pormenor de que definitivamente não gostei: a simplificação do trabalho de Vasily. Em "Inimigo às Portas", Vasily apenas mata oficiais superiores. Num caso chega a apontar à cabeça de um soldado alemão e depois desiste comentando que era apenas um soldado. Pelo contrário, o sniper alemão já demonstra toda a crueldade que esperamos de um soldado nazi. Não direi aqui os pormenores para não estragar o filme a quem ainda não o viu, mas a realidade - pelo menos a dos atiradores furtivos russos não era essa. Sabendo das enormes dificuldades que os alemães tinham em encontrar água suficiente atiravam sobre toda e qualquer pessoa que tentasse ir buscar àgua às fontes. Isso incluia não só oficiais como soldados. Muitas vezes os alemães obrigavam civis russos a fazerem esse serviço. E estes eram também mortos. Outras enviavam crianças russas. E também estas eram assassinadas pelos snipers soviéticos como nos conta Vasily Grossman, correspondente de guerra soviético que cobriu a batalha nas suas notas pessoais.    

A realidade é muito mais feia do que os filmes americanos alguma vez conseguirão mostrar. O público não aprecia histórias onde nenhuma personagem é boa. Mas realidade é essa: Num contexto que ultrapassou todos os limites, todas as peronagens são ambíguas, pecadoras e complexas.

É um filme de acção interessante e num ambiente diferente. Que joga com as políticas repressivas do regime soviético de Stalin e com as liberdades naturalmente criadas pelo caos instalado de uma batalha de proporções nunca vistas. Mostra a luta pela sobrevivência dos russos e a loucura criada pelo embate de dois dos homens mais loucos e sanguinários que alguma vez existiu. Presta um serviço importante à história ao ajudar a dar a conhecer o que foi uma das mais decisivas batalhas de todos os tempos, e certamente uma das três batalhas (as outras seriam na minha opinião, Kursk e Midway) que mudaram o rumo da segunda guerra mundial.

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