A seguinte reportagem do Jornal "O Público"[1] dá-nos uma das muitas perspectivas do problema que foi criado na Crimeia e que a cada dia que se passa parece mais perto de explodir. Stalin considerou todo o povo Tártaro culpado de traição à pátria assim que a "Grande Guerra Patriótica" (leia-se, a segunda guerra mundial) acabou. Enquanto muitos Tártaros lutavam na Europa, as suas famílias eram expulsas das suas casas e do seu país e espalhadas pela União Soviética[2]. Metade não sobreviveu à deportação. Às vezes pergunto-me como é possível a Palestina ter chegado ao ponto que chegou. Ou a Chechénia. Kashmira. Síria e tantos outros. A Crimeia tem tudo para se tornar mais uma dessas situações impossíveis de resolver. Potencialmente, daqui a 100 anos ainda nos vamos de lembrar de Putin da mesma forma que recordamos Sykes, Picot[3] ou Balfour[4]. Ficamos agora com um referendo que por muito limpo que possa ser, é feito depois de uma limpeza étnica, de uma migração massiva de russos para o território, de uma oferta territorial de Krushev sem qualquer sentido e debaixo de uma ocupação do maior interessado no resultado. E, tal como na Palestina e outros casos semelhantes, agora não há solução justa possível. Os Russos que ali vivem não são imigrantes, mas sim segunda ou terceira geração. Os Tártaros que regressaram são apenas uma fracção dos descendentes dos sobreviventes originais. Os militares Ucranianos estão aterrorizados e presos dentro dos seus barcos e fortes tendo perdido o controlo da maioria das fronteiras. Os Russos falam frequentemente da sensação de cerco, mas parece-me que terão os seus vizinhos mais razões para sentirem um aperto no coração. E o que já aconteceu não pode ser desfeito. Mais um vela acesa em cima de um barril de pólvora.
“A Crimeia é dos Tártaros. Se os russos vierem, morro aqui a combatê-los”
PAULO MOURA (em Sinferopol) 03/03/2014 - 07:37
A população tártara da Crimeia foi deportada nos tempos soviéticos e só regressou depois da Perestroika. Tem boas razões para temer os russos. Quando finalmente conseguiram uma vida normal, tudo parece de súbito ameaçado. Dizem que vão combater.
Os soldados soviéticos
chegaram a meio da noite e disseram: “Peguem nas vossas coisas e venham
connosco. Têm 15 minutos”. Mustafaia tinha sete anos, mas lembra-se bem daquele
dia 18 de Maio de 1944. “Só houve tempo de pegar em duas almofadas e três
cobertores. Eu, a minha mãe e os meus dois irmãos corremos à frente dos
soldados russos para os vagões do comboio. Eles diziam que nos matavam se não
corrêssemos. O meu pai não estava connosco, porque tinha ido para a guerra,
onde veio a morrer”.
Milhares de tártaros
das aldeias da Crimeia entraram naqueles comboios, que partiram rumo ao
Uzbequistão. Ninguém lhes explicou porquê, nem para onde iam. Ninguém lhes
disse que abandonavam a sua terra para sempre.
“A viagem durou 45
dias”, conta Mustafaia Halidé, que hoje tem 77 anos. “Não nos davam água nem
comida. Morreram muitas pessoas no caminho. Dos que partimos, talvez só metade
tenha chegado. Aos que iam morrendo, eles atiravam-nos para fora do comboio”.
Mustafaia vive hoje
sozinha, na sua casa da aldeia de Novinka, a uns 40 quilómetros de Simferopol,
a capital da Crimeia. Nasceu na aldeia de Markur, não longe daqui, numa casa
que pertencia aos pais, e que eles tiveram de abandonar, quando ocorreu a
deportação. “A casa ainda existe. Já lá fui três vezes vê-la. Pertence a
russos”, diz Mustafaia. Nunca ninguém lhe disse que tinha direito a recuperar a
casa, ou a qualquer forma de compensação. E ela também não protestou. Já se
sente suficientemente grata por poder de novo viver na Crimeia.
“Quando chegámos ao
Uzbequistão, puseram-nos a viver num curral para animais, em Sheridan. A
família ficou separada: a minha mãe num curral, nós noutro. Nos primeiros
tempos, passámos muita fome. Apanhávamos erva para comer. Aos 10 anos comecei a
ir à escola, mas iam buscar-me todos os dias, para trabalhar na apanha do
algodão. Era nisso que todos trabalhávamos, para sobreviver”.
Mustafaia viveu 47
anos no Uzbequistão. Casou, teve cinco filhos. O marido morreu há 49 anos,
nunca voltou à Crimeia que abandonara na infância. E Mustafaia, tal como todos
os tártaros, nunca soube porque teve de passar toda a vida numa terra estranha.
“Na altura, ouvimos dizer: ‘Os russos querem a Crimeia para eles!’ Mas só agora
é que lemos, na internet, coisas sobre as razões do que se passou”.
A traição como
pretexto
Na internet, 60 anos
depois, Mustafaia e os filhos leram que a deportação dos Tártaros foi um
castigo de Estaline por eles terem, alegadamente, colaborado com os nazis. “Não
conheço ninguém que tenha ajudado os nazis. O meu pai combateu no Exército
Vermelho, contra os nazis, e morreu na guerra. Deu a vida pelos russos,
enquanto eles lhe deportavam a família”.
Fekret Seferchaiev, de
78 anos, vive numa outra casa de Novinka, e foi deportado no mesmo dia de Maio
de 1944. Eram uma família de nove pessoas, só um dos irmãos estava na guerra.
“O medo foi tão grande, que não levámos nada. Perdemos a casa, perdemos tudo.
Quando chegámos lá, meteram a nossa família e mais outras três num barracão sem
janelas. A água que bebíamos estava contaminada, a minha mãe, o meu pai e uma
das minhas irmãs morreram com uma infecção duas semanas depois de termos
chegado”. Segundo os historiadores, mais de 40 por cento da população tártara
morreu nos primeiros anos do exílio, devido às más condições de alimentação e
higiene.
Os seis irmãos sobreviventes
foram separados e entregues a diferentes famílias, no Cazaquistão. “Para não
morrermos à fome, éramos obrigados a trabalhar para eles, a tomar conta das
vacas”, diz Fekret. “Por isso não pude ir à escola. Sou analfabeto”.
A falta de instrução
impediu mais tarde a sua ascensão no Partido Comunista, onde se inscreveu, não
propriamente por acreditar na bondade do socialismo, mas para tentar aceder a
um bom emprego. “Cheguei a trabalhar em Mosvovo. Queria ser um homem poderoso.
Mas não me deixaram”.
Os tártaros, grupo
étnico de origem turca e religião maioritariamente muçulmana, representam hoje
cerca de 10 por cento da população da Crimeia. Mas sempre foram a maioria, e,
até ao século XVIII, constituíram um estado independente, o Canato da Crimeia,
uma das maiores potências da Europa oriental.
Com a derrota do
Império Otomano pelos russos, em 1774, o Canato deixou de ter a protecção dos
turcos e foi anexado pelos russos. Mais de um milhão de tártaros fugiram então
para várias regiões otomanas. Após a revolução de 1917 os Tártaros chegaram a
criar a sua própria república independente, que seria no ano seguinte destruída
e anexada pelos bolcheviques.
Durante a Segunda
Guerra, uma Legião Tártara colaborou com os nazis durante a ocupação alemã da
península. Várias unidades tártaras, por outro lado, combateram os nazis no
Exército Soviético. A “traição dos tártaros” não pode portanto ter sido mais do
que o pretexto para o decreto de Estaline que deportou todo o povo tártaro numa
só noite. O verdadeiro motivo terá sido despovoar as regiões de maiorias
étnicas não-russas, para prevenir problemas na periferia do império. Alguns
historiadores sérios afirmam porém que a deportação se deveu simplesmente à
loucura de Estaline.
Quando, nos anos 80,
começou a Perestroika na URSS, Mikhail Gorbatchov autorizou os Tártaros a
regressarem à Crimeia. Muitos aproveitaram, apesar de Moscovo nunca ter
concedido nenhuma compensação nem subsídio, nem sequer ter pedido desculpa aos
Tártaros.
“A vida inteira à
espera disto”
Susana Seferchaieva,
42 anos, nora de Fekret, construiu a primeira casa da aldeia de Novinka. “Aqui
não havia nada, eram campos apenas”, recorda ela, que chegou grávida, em 1991,
do Uzbequistão onde nasceu. “Os meus pais foram deportados e morreram lá, em Tashkent.
O seu sonho era um dia voltar à Crimeia, por isso eu estou aqui, por eles”.
Várias aldeias foram
construídas de raiz, porque as antigas estão hoje ocupadas por russos. “Eu
voltei porque a minha terra é aqui”, diz Mustafaia. “Os velhos estavam a morrer,
ninguém traria para aqui a nossa memória. Eu tinha de vir. Senhor Estaline, não
morri, por isto estou na Crimeia”. Trouxe os filhos, que hoje não têm emprego,
por causa da crise económica na Ucrânia, mas nem por isso lhes passa pela
cabeça emigrar. “Daqui não saímos mais”, diz a mulher, na sua casa forrada a
papel de parede cor-de-rosa, com os sofás cobertos de rendas, um lenço de seda
amarela emoldurando-lhe o rosto moreno.
“Já não somos a
maioria porque metade morreu, e outros ainda estão das terras de exílio. Mas a
Crimeia é dos Tártaros. Se os russos vierem, eu não fujo. Morro aqui a
combatê-los. Não acredito que eles respeitem os Tártaros”.
Mustafaia está ao lado
da revolução de Maidan, que “tem o direito de lutar contra chefes corruptos”. E
o único líder russo de que gosta é Gorbatchov. “Estaline o que devia fazer era
comer merda. E Putin, se eu pudesse, matava-o”.
Fekret, que tentou ser
poderoso numa Rússia que nem lhe permitiu aprender a ler, tem agora toda a
família na Crimeia. “Passei a vida inteira à espera disto. Poder ter a minha
casa, a minha família, a minha terra. E agora tudo pode voltar atrás. Estamos
aqui há 15 anos, e antes nada existiu. Isto é a nossa vida”, diz ele, chamando
as três netas, que já nasceram na Crimeia. Fatineska é a mais nova, tem 7 anos
e um olhar doce e frio que entende tudo.
“Agora temos uma vida
normal, integrados na Ucrânia, mas estou certo de que os russos vão tentar
destruir isso. Fizeram-no na Tchetchénia, vão fazê-lo aqui. Mas nós desta vez
vamos combatê-los”, diz Fekret.
Susana, mãe de
Fatineska, diz a rir: “Desta vez não nos deportam, porque temos os nossos
homens connosco”