segunda-feira, 30 de junho de 2014

Rebranding terrorista

Esta manhã, a organização terrorista Islamic State of Iraq and Levant (ISIL), declarou que o seu nome será, a partir de hoje, simplesmente de Islamic State. Este movimento é interessante. Aliás, toda a declaração feita hoje está repleta de aspectos curiosos e que, considero, devem ser vistos com algum cuidado.

I) Confusão entre ISIL e ISIS

A organização tinha vários nomes, e depois de traduzida, ainda mais. Os vários media internacionais utilizavam indistintamente as iniciais ISIL (Islamic State of Iraq and Levant) ou ISIS (Islamic State of Iraq and Syria). Noutros casos as inicias árabes eram utilizadas, ou seja, Da'Ish ou DAISH.

Numa empresa privada, este confusão de identidades seria considerada grave e motivo suficiente para um rebranding ou por uma campanha de marketing no sentido de clarificar o nome na mente dos consumidores e outros stakeholders. Pelos vistos, para uma organização paramilitar, a importância mantém-se.

A partir de agora, passa a ser unicamente "Islamic State" ou IS.

II) Definição de fronteiras

Como parte da mesma declaração, o IS define as fronteiras actuais do seu "império". Desde Allepo (Síria) até Dyala (Iraque), uma zona predominantemente sunita e debaixo do controlo destes. No entanto, ao retirar a limitação geográfica do seu nome, o Islamic State passa a querer colocar-se como descendente directo dos primeiros califas, que governaram o Império Islâmico logo após a morte do profeta em 632 DC. Ao fazê-lo, devemos assumir que nenhuma fronteira actual deverá ser tida em conta e que a sua agenda está claramente a um nível religioso e nacionalista muito acima das fronteiras definidas por Sykes e Picot há 96 anos atrás. Isto certamente causará muitos calafrios nos estados circundantes, em especial no Líbano e na Jordânia.

III) Título de Califa


Abu Bakr Al Bagdadi
Acrescenta-se ainda que o seu líder, Abu Bakr Al Bagdadi assume o título de Califa e é apresentado como "o Sheikh, o lutador, o académico que pratica o que ensina, o devoto, o líder, o guerreiro, o renovador, o descendente da família do Profeta, o servo de Deus". Bagdadi utiliza assim uma dupla legitimidade: a prática, resultado das suas conquistas; e a divina, fruto da descendência de Mohammed e do trabalho em nome de Allah.

Esta forma não é nova, e praticamente todos os monarcas do mundo islâmico reclamam essa mesma proximidade à família do fundador do Islão.

IV) Obediência absoluta

Continuando, o novo Islamic State declara que exigirá de todos os grupos armados na zona a submissão ao IS. Possivelmente um resultado de hubris, depois de tantas vitórias consecutivas, mas também uma indicação clara à Al Qaeda de quem realmente manda.

V) Construção de um país

Por fim, ao assumir o início de um Califado, o IS está a comprometer-se a construir as instituições que um estado necessita. E isto é muito diferente de gerir uma organização militar. Já tinha dado antes indicações nesse sentido (li há umas duas semanas que tinha criado uma agência de qualidade alimentar por exemplo) mas agora terão que começar a pagar salários, gerir investimentos (poços de petróleo, refinarias e oleodutos), construir estradas, organizar polícia, bombeiros e hospitais, etc. E fazer tudo isto debaixo de fogo e com um mundo inteiro absolutamente hostil. Não parece um trabalho fácil, e não me admirava que muito em breve descubram que estavam bem mais confortáveis a destruir e pilhar do que a gerir um país.  

sexta-feira, 27 de junho de 2014

O Homicídio de Francisco Fernando

Um século passado sobre o homicídio que permitiu a tantos seguirem os seus sonhos de honra e vitória pela guerra. 4 anos depois, vários impérios desaparecidos, vários reis, imperadores e czares exilados ou assassinados, o mundo emergia dos horrores da primeira guerra mundial jurando para nunca mais, enquanto simultaneamente criava todas as condições para vinte anos depois iniciar uma guerra ainda mais destrutiva e mortal.

No dia 28 de Junho de 1914, o jovem sérvio bósnio Gavrilo Princip de 20 anos, na bela cidade de Sarajevo assassina o Arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro e a sua esposa Sofia, Duquesa de Hohenberg. A primeira peça do dominó caira.


Francisco Fernando e sua esposa Sofia, em Sarajevo,
minutos antes do seu assassinato (28-Junho-1914)



domingo, 22 de junho de 2014

Iraque - A Trama Adensa-se

Moqtada Al Sadr
Depois de uma demonstração de enorme força do ISIL, que representava a Al Qaeda no Iraque até ter decidido que as fronteiras de Sykes-Picot não se aplicavam a eles, temos um novo (velho) player a mostrar que ainda está em jogo: Moqtada Al Sadr. Ao extremismo sunita, parece que se vai contrapor o extremismo shiita...

Mas comecemos por definir a situação actual: Primeiro, é importante definir a região em causa, e esta claramente não se pode limitar ao Iraque. O Iraque e a Síria representam neste momento um campo de batalha único. A partir do momento que o ISIL (Estado Islâmico do Iraque e Levante) começou a lutar nos dois territórios, temos uma aliança tácita estranha entre dois governos (Bashar Al Assad e Nouri Al Maliki) que têm muito menos em comum do que seria de esperar. Este inimigo comum talvez os una por uma vez, embora provavelmente Maliki não queira ver no Iraque o tipo cenário em que o seu vizinho tem vivido nos últimos anos. As forças governamentais Sírias têm (com a limitada ajuda do Hizbullah libanês, apoio militar e logístico Russo e manifesta incapacidade da comunidade internacional) conquistado terreno e controlam hoje grande parte da Síria, incluindo os portos e a maioria dos principais pontos estratégicos militares e económicos. O Free Syrian Army (a facção rebelde Síria apoiada pelos Estados Unidos da América e grande parte da comunidade internacional) praticamente desapareceu. A Frente Al Nusra (oficialmente a Al Qaeda na Síria) vem perdendo terreno quer para o Exécito de Bashar Al Assad e para o ISIL, e - finalmente - o ISIL controla uma parte considerável do leste da Síria e ocidente do Iraque. Não obstante algumas escaramuças entre o Exército Sírio e a Turquia, incidentes nos Montes Golan ocupados por Israel e ameaças veladas por parte de Obama, uma mistura de sorte, boa diplomacia e apoio Russo e Chinês conseguiram evitar o descalabro de Assad e do seu regime. Pelo contrário, quer internamente quer para o resto do mundo, começa a ser visto como um mal menor, e uma alternativa bem mais razoável do que a Al Qaeda ou o ISIL. Entretanto a maior crise de refugiados dos nossos tempos está a levar ao limite a capacidade logística, financeira e humana do Líbano e da Jordânia, que tentam a todo o custo manter-se fora desta guerra.

A vermelho: Área controlada pelo ISIL
A Amarelo: Área de actuação do ISIL
A Branco: Restante Iraque e Síria
Do outro lado da arbitrária fronteira criada nas mentes dos ministros dos negócios estrangeiros dos impérios britânicos e francês em 1916 (o famoso acordo Sykes-Picot), o ISIL, liderado pelo auto-entitulado Califa, Abu Bakr Al Bagdadi, iniciou nas últimas semanas um espectacular ataque a inúmeros pontos cruciais do Iraque. Tomou a segunda maior cidade do país, Mosul, conseguiu o controlo da maior refinaria do Iraque e a cada dia que passa novas conquistas somam-se ao território já seu. A Al Jazeera anunciava a queda de Qaim, Rawah e Anah na província de Anbar. Com estas vitórias militares, o ISIL aumenta também a sua capacidade de recrutamento. Aparentemente já terá pilhado mais de 500 milhões de dólares nos bancos de Mossul, e se tivermos em conta que controla alguns poços de petróleo no leste da Síria, ao obter também refinarias torna-se perfeitamente independente neste recurso crucial. Muitos sunitas mais seculares mas que se consideram vítimas das políticas étnicas e religiosas de Maliki assim como antigos seguidores de Saddam parecem estar aliados do ISIL, embora seja difícil acreditar que essa aliança possa durar muito tempo.

O governo iraquiano, com o apoio dos principais líderes religiosos shiitas e com a benção de Estados Unidos e Irão (the unholy alliance?) estão a recrutar dezenas de milhares de voluntários para cobrirem a defesa de Bagdad, agora a apenas umas dezenas de quilómetros da frente de combate. Os exércitos iraquianos, onde os estados unidos gastaram biliões de dólares, desfazem-se aos primeiros sinais do ISIL e vários generais foram demitidos ou desertaram.

Demonstração de força do Exército Mahdi
 a força paramilitar de Al Sadr em Junho 2014
Neste fim de semana, Moqtada Al Sadr reaparece dos escombros da antiga Saddam City (um bairro pobre shiita de Bagdad rebaptizado de Sadr City pelos Americanos quando invadiram o país em 2003 em honra do grande dissidente Mohammad Mohammad Sadeq Al Sadr - pai de Moqtada Al Sadr). Em fevereiro deste ano, tinha desistido da via política o que permitiu a Maliki uma vitória (um pouco mais) fácil, concentrando o voto shiita, embora até agora não tenha conseguido formar um governo de coligação.

Que Al Sadr se levante para defender a comunidade shiita das forças do ISIL, não é estranho. Mas é verdadeiramente surpreendente o número de militantes afiliados a este. Numa demonstração de força, Al Sadr fez este fim de semana desfilar dezenas de milhares de soldados, bombistas suicidas, carros armados, regimentos de bazookas pelo meio da "sua" cidade. Com milhares de veteranos da guerra contra os americanos, poderão constituir a verdadeira defesa de Bagdad. Mas se isso acontecer (e pode acontecer já nas próximas semanas) resistirá Moqtada à tentação do palácio presidencial? E conseguirá ele parar as aparentemente invencíveis forças do Islamic State of Iraque and Levante?

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Islamic State of Iraq and Levant

Bandeira do ISIL
(Al Dawla Al Islamia fil Iraq wa al Sham)
Inimigos de Bashar Al Assad, Nouri al-Maliki, do Hizbullah, do Free Syrian Army e da Al Qaeda, dos Estados Unidos, da Europa e do Irão e, atrevo-me a dizer, inimigos de praticamente toda a humanidade. É difícil imaginar o que significa um grupo terrorista ser considerado pelo líder da Al Qaeda, Ayman al-Zawahiri, como "too vicious"...

É impensável imaginar que o Islamic State of Iraq and Levant (ISIL ou ISIS) irão conseguir montar algum tipo de governo contra a vontade das populações locais e de praticamente todos os governos do mundo. Mas até que desapareçam, é provável que ainda tenhamos que chorar muitas vidas. 

A verdadeira pergunta é: isto é um resultado da invasão do Iraque em 2003, da retirada em 2011, do apoio dado às facções anti-Assad ou, (e também temos que colocar esta hipótese de forma séria) nenhuma das acções militares e financeiras do Ocidente tiveram qualquer impacto?

Massacre de voluntários Shiitas iraquianos
publicados em 14-06-2014


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Para acabar com todas as guerras

Regessando à literatura da primeira guerra mundial, decidi ler "To End All Wars, A story of Loyalty and Rebellion, 1914-1918" de Adam Hoschschild. O livro é interessante, mostrando a Grande Guerra na perspectiva de um conjunto limitado de personagens, principalmente dos pacifistas, socialistas e líderes anti-guerra ingleses. Não é, por isso, muito detalhado no que toca às grandes batalhas e movimentos táticos, aos diferentes teatros de guerra e aos países mais pequenos que também entraram na guerra (Portugal não aparece uma única vez referenciado no livro).

O que mais apreciei neste livre foi o ponto de vista das suffragettes, as mulheres que lutaram pelo voto da mulher e que no final da guerra acabariam por conseguí-lo, pelos visionários que sonhavam com um mundo pós-capitalista e pós-imperialista melhor e que viram no movimento bolchevique russo uma esperança enorme. A revolução que acabou a odiável império dos Romanov levou muitos destes a mudarem-se para a Rússia nos anos que se seguiram, mas não foram poucos os que rapidamente perceberam a realidade do que significava esta ditadura do proletariado. Muitos outros, que acreditaram até ao fim, provavelmente só perceberam quando - décadas depois - as purgas stalinistas perseguiram, levaram para os Gulags e assassinaram muitos destas "influências estrangeiras" por espionagem em mais uma das suas loucas teorias da conspiração, resultado do seu (não menos insano) complexo de perseguição.

Emmeline Pankhurst 1913
Na luta pelos direitos das mulheres, talvez as histórias mais interessantes sejam as da disfuncional família Pankhurst: Mãe e quatro filhas que lutaram pelos seus direitos enquanto mulheres simultaneamente lutando também entre si e por todo o tipo de objectivos políticos completamente diferentes. Emmeline Pankhurst[1], a matriarca da família, apoiou a guerra e o mesmo Primeiro-Ministro a quem poucos anos insultava publicamente. O seu radicalismo e o apoio ao esforço de guerra ajudou a que as mulheres se tornassem uma parte crucial do esforço de guerra, em especial na sua componente industrial, o que levou ao alargamento do direito de voto às mulheres (e também a muitos homens que não tinham direito devido a não cumprirem os requisitos de propriedade). Também as suas filhas seguiram caminhos historicamente interessantes: Christabel[2] a mais velha das suas filhas, esteve exilada em França antes da guerra, apoio a entrada do Reino Unido na guerra e acaba a sua vida nos Estados Unidos encontrando a paz nas profecias da religião, acreditando na segunda vinda de Cristo. Sylvia[3], outra das suas filhas, ficou horrorizado com o apoio que a irmã mais velha e a mãe deram à guerra. Toda a vida lutou pelos direitos das mulheres e, nas décadas a seguir à guerra pela causa anti-fascista. Adela[4], que iniciou a sua carreira política ao lados das irmãs e da mãe, pelo sufrágio universal, virou para o comunismo, emigrou para a Austrália e virou depois para a extrema direita, defendendo a aproximação da Austrália ao Japão imperial na segunda guerra mundial.

Keir Hardie 1902
Também as histórias de Keir Hardie[5], fundador do que é hoje o partido Trabalhista inglês, amante da jovem Sylvia Pankhurst e profundo activista contra a guerra, nos mostra um lado emocional e desesperado dos que compreenderam que a primeira guerra mundial era um desastre de proporções inimagináveis. Morreu antes do final da guerra profundamente desgostoso do rumo que o seu país levava.

Esta obra de Adam Hoschschild é por isso muito apelativa, mostra-nos a guerra no prisma dos poucos que lutaram contra ela. Do ponto de vista das outras guerras que se lutaram em paralelo, pelos direitos das mulheres, pelos direitos dos trabalhadores, pelos direitos dos povos das colónias inglesas. Como ponto fraco, aponto apenas a dependência que continuamos a ter dos autores ingleses no âmbito da história. Temo que com tantos livros escritos pelos muitos e brilhantes historiadores ingleses, e tão poucos pelos historiadores de outros países, que a própria história acaba por ser reescrita. Que criemos uma ligação demasiado próxima às personagens que são naturalmente alvo dos britânicos e extremamente distante dos que lutaram do outro lado da barricada, ou noutros campos de batalhas mais discretos.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Dia D - 70 anos

Não foi a maior, a mais importante ou a mais sangrenta batalha da história ou sequer da segunda guerra mundial. Mas foi um feito logístico impressionante, um passo crucial para acabar com a guerra e o momento em que a Alemanha Nazi compreendeu que, acontecesse o que acontecesse, o seu destino estava selado. Neste dia, relembramos os involuntários heróis que depois de horas enlatados dentro de pequenos barcos foram atirados contra as praias da normandia onde os esperavam poucos - mas bem armados e veteranos - soldados alemães.

Deixo aqui os links para dois livros excelentes sobre o desembarque que revi neste blog em 2012: "O Dia Mais Longo" de Cornelius Ryan e "Operação Overlord" de Max Hastings.