segunda-feira, 2 de abril de 2012

AK-47

Decidi escrever sobre esta espingarda de assalto quando estava a olhar para as minhas prateleiras e reparei na quantidade de capas que as incluem. Tenho bastantes livros sobre o Médio Oriente e o mundo Árabe fruto de intensas viagens durante os últimos 6 anos e embora alguns sejam sobre cultura e artes, a maioria são sobre história e guerra.

Esta arma de fogo, criada em 1947 na antiga União Soviética por Mikhail Kalashnikov (daí o nome AK-47), tornou-se no símbolo de todas as revoluções desde os anos 50. É conhecida por ser uma arma de enorme potência e tão simples de usar que pode ser transportada e disparada por uma criança, o que infelizmente aconteceu e continua a acontecer em grande escala em tantos conflitos da África, Médio Oriente, Ásia e América Latina.

O simbolismo da Kalash é tal que é a única arma de fogo que aparece numa bandeira de um país (Moçambique). Existem mais uns poucos com armas, como a Arábia Saudita, Swazilandia ou Sri Lanka mas todos eles são países recentes com armas cerimoniais clássicas na bandeira.

Já me deparei com AKs diversas vezes durante a última década em muitos lugares diferentes. Na televisão, os documentários do Discovery e History Channel sobre esta arma, comparações entre esta e a americana M16 entre muitos outros programas onde a dita, não sendo a protagonista, aparece constantemente nas mãos das figuras centrais em causa. Nos meus livros, saltam à vista as capas de "A High Price" de Daniel Byman, "O Palestiniano" de Antonio Salas, "Meninos Soldados" de Jimmie Brigs e o "The Great War for Civilization" de Robert Fisk. Este último autor descreve num dos seus livros uma entrevista que fez ao criador da arma, procurando entender o que este sente em relação à sua utilização, mas o resultado da conversa é deprimente. Talvez a mais exemplificativa descrição desta assault rifle venha no entanto de Hollywood, no filme "Lord of War" onde um traficante de armas (representado por Nicolas Cage) se refere a uma como sendo a verdadeira arma de destruição massiva.

Nos media escritos, é sempre curioso o fenómeno destas armas receberem um "prefixo" de russian made ou soviet era. É como se os jornalistas nos quisessem relembrar de que existe uma maldade implícita e especial nestas armas que não encontraremos numa M-16 ou numa G3. Não tinha notado estas mensagens subliminares até ver este fenómeno descrito num dos artigos de opinião de Robert Fisk no "The Independent". Desde então tenho mantido um controlo mais apertado e de facto isto acontece com uma regularidade impressionante.

Felizmente nunca tive nenhuma apontada na minha direcção, e talvez por isso consigo olhar para a AK-47 de forma fria, nos seus impactos na história da região em que me habituei a viver e no brilhantismo técnico desta máquina de ceifar vidas. O mesmo não posso dizer de outras armas competidoras, como a M-16 que tive apontada a centímetros do meu peito, mas essa história terá que ficar para outra ocasião.

Salvo erro, encontrei a Kalashnikov pela primeira vez nos desertos do Sahara Ocidental quando numa longa viagem de descoberta por Marrocos resolvemos sair do caminho previsto para espreitar por este território ocupado. Nessa altura, a própria noção de ocupação era-me completamente estranha e se não fosse pela fluência em espanhol dos habitantes mais velhos da região provavelmente teríamos ficado sem saber que muitas das pessoas à nossa volta eram colonos. Enviados pelo governo marroquino em grandes números, estes "novos" Sahrawi vão rapidamente alterando a demografia do país de forma a que quando o inevitável referendo chegue, os votos pró-Marrocos possam sair vencedores. Para garantir este desfecho, o referendo vai sendo adiado vezes sem conta e 20 anos depois ainda não foi feito.

Ao contrário de Marrocos propriamente dita, onde a presença policial não é significativa, no Sahara Ocidental os check points seguem-se uns atrás dos outros, por vezes com distâncias de centenas de metros entre eles e onde as AK-47 são rainhas. Não estive em contacto com os rebeldes da frente Polisario (os independentistas) mas não será difícil de imaginar que terão às costas as mesmíssimas armas russas. Essa viagem tornou-se algo sui generis, e entre as viagens feitas no Sahara Ocidental e o sudeste de Marrocos (algo marcado no nosso guia como disputed territory) os check-points sucediam-se sem que conseguíssemos perceber exactamente quem nos estava a mandar parar. Em pelo menos uma situação o motorista do autocarro pediu para nos escondermos debaixo dos bancos, aparentemente porque a presença de estrangeiros estava a atrasar a viagem a toda a gente. Não é muito claro o que teria acontecido se os guardas notassem, mas por algum motivo estava bastante confiante que não aconteceria nada de especial.

Uns anos mais tarde, visitei todas as repúblicas da ex-Jugoslávia onde embora esta arma não estivesse particularmente visível, os seus estragos estavam por todo o lado, especialmente nas cidades bósnias de Sarajevo e Mostar. Tinham-se passado poucos anos do fim da guerra civil e do terrível cerco de Sarajevo, e as cicatrizes de balas e explosões de morteiro estavam em todo e qualquer edifício. Embora para a história fique o terror causado pelos atiradores furtivos no que ficou conhecido como o sniper alley, esta guerra foi feita com todas as armas disponíveis pelos três lados do conflito e tendo sido construídas até hoje 100 milhões de AK-47's não é de estranhar que milhares destas tenham sido utilizadas nesta guerra. Terão sido estas as armas utilizadas no ínfame massacre de Srebrenica, onde 8000 homens e rapazes bósnios foram assassinados. Um video que incluí extrema violência no youtube, e do qual naturalmente não posso confirmar a autenticidade, mostra a utilização dessas armas durante o massacre de Julho de 1995 (http://www.youtube.com/watch?v=SpJKYQwDcFM).

Continuei a vê-as vezes sem conta até me habituar à sua presença durante os anos que vivi na Palestina. Oficialmente a Palestina não tem exército pelo que percebi, por isso debaixo de uma insígnia de polícia, homens armados com AK-47 e com uniformes de aparência militar guardavam as principais ruas de Ramallah, as residências oficiais dos políticos e os ministérios. Felizmente não passei durante todo esse tempo nenhuma situação digna de nota com estes polícias/militares e as poucas vezes que fui parado em operações stop por estes agentes foram sempre perfeitamente pacíficas.

No entanto, aconteceu um evento relacionado que acho que vale a pena relatar. Aconteceu em 2008 quando o tempo começava a aquecer. Assisti a um jogo de futebol da liga dos campeões do Liverpool com um pequeno grupo que incluia um inglês, um palestiniano e mais uma ou outra pessoa. Devido à diferença horária, os jogos da Champions passam bastante tarde e quando acabou decidimos ir à zona central de Ramallah (Al Manara) para tentar comer alguma coisa. Enquanto nos dirigíamos de carro começavamos a ver carrinhas pick up cheias de gente com os tradicionais Keffiyeh carregados de AK-47 e outras armas de fogo. Faziam imenso barulho e disparavam ocasionalmente para o ar.

Nós - os estrangeiros - olhávamos uns para os outros sem saber muito bem o que dizer dada a total ausência de comentários do palestiniano em relação ao evento que parecia retirado de um filme de guerra do Médio Oriente. A conversa manteve-se ainda durante algum tempo sobre os detalhes do jogo de futebol que acabáramos de assistir durante o percurso de Al Bira para Ramallah (são menos de 5 minutos de viagem).

Quanto mais nos aproximavamos de Al Manara mais carrinhas víamos e mais o tiroteio se tornava audível. Nesta praça, facilmente reconhecível pelas estátuas de leões tipicamente pintadas de forma bastante amadora, encontra-se sempre uma visível presença policial da Autoridade Palestiniana, pelo que achamos que estaria mais calma. Não só era neste local que se encontrava a origem das rajadas que vínhamos ouvindo como isto estava a acontecer em frente dos polícias e militares que mostravam um sorriso descontraído e satisfeito.

É quando o carro fica estacionado que finalmente desbloqueamos a pergunta que exigia resposta urgente. Afinal de contas, e mesmo sendo Ramallah uma cidade bastante mais heterogénea e cosmopolita do que a maior parte da Palestina, ser estrangeiro chama sempre mais a atenção. E não é bom ser o centro das atenções quando está toda a gente munida de AK-47's e em modo trigger happy:

- Queres-nos explicar o que é que se passa?

- São só os universitários que estão todos felizes porque pela primeira vez em muitos anos, as eleições da associação de estudantes foram ganhas pelo grupo próximo da Fatah [partido de Yasser Arafat e Mahmoud Abbas e que controlavam nesta altura a Cisjordânia, onde se encontra Ramallah]

- E não devíamos ter cuidado por causa de todas essas armas aos tiros?

E a resposta final foi feita com um sorriso troçista:

- Se não estão a apontar para ti não precisas de te preocupar.

Com mais algum tempo e bastante mais curiosidade, lá acabamos por perceber que as eleições estudantis são aceites na Palestina como um indicador da sociedade. Depois de Gaza e a Cisjordânia virarem as costas (o primeiro ficando debaixo do controlo do Hamas e o segundo da Fatah), e sabendo que o Hamas era o legítimo vencedor das eleições dois anos antes (Janeiro de 2006), estes resultados deram força a Mahmoud Abbas (presidente da Autoridade Palestiniana) e a Salam Fayyad (primeiro ministro) e seu governo formados na base de "emergência nacional" pelo presidente em 2007.

Suspeito que ainda verei muitas mais AK-47 na minha vida. Que tenha sempre a sorte de estarem apontadas ao céu ou adormecidas...



5 comentários:

  1. A AK47 tem origem na tecnologia NAZI importada pela URSS no fim da segunda Guerra Mundial tendo sido atribuida a sua invenção a Mikhail Kalashnikov pela propaganda soviética.

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    1. Caro Anónimo

      Num documentário que vi há alguns anos atrás falavam da criação das primeiras armas de assalto, que foram efectivamente criadas pelos alemães. Se bem me lembro, havia uma questão com o Hitler que não via futuro nas metralhadores portáteis e acreditava que o que interessava eram as espingardas. Daí terem ficado conhecidas como espingardas de assalto (Assault Rifles). Os técnicos acreditavam na ideia e cederem no nome para não serem vetados pelos preconceitos do líder.

      Também não fico surpreendido de essa tecnologia ter sido copiada pelos vencedores da guerra. O mesmo aconteceu com tudo o resto, desde os motores a jacto, os submarinos, as V2, etc.

      No entanto não tenho informações de que Mikhail Kalashnikov não seja realmente o criador da arma, mesmo que inspirado por tecnologia já existente. De facto, a durabilidade da arma mostra a qualidade do seu desenho e simplicidade da sua construção e manutenção.

      Cmps,

      António

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    2. Nao e bem assim, a ak-47 e um imitação da grande metrelhadora semi automatica Sturmgewehr 44 mais conhecida por (StG44) (utilizada pela famosa tropa defensiva de hitler WAFFEN SS), a mecanica desta arma foi transferida (para nao dizer roubada) para a tal metrelhadora ak-47, se pesquisares sobre a Sturmgewehr 44 iras reparar que o design e muito aparecido a arma sovietica nao so no seu sistema mecanico mas tambem como esteticamente.
      Ou seja depois da russia ter invadido berlim nao so roubou os projectos de origem militar ou por ex. pra fabricar submarinos como no caso do famoso submarino KURSK (primeiro submarino nuclear e ainda nos tempos de hoje o mais potente).
      Resumindo e concluindo a ak-47 e uma imitação com uma fama folclore e desatualizada para os dias de hoje, visto que ja existe melhores e como poder de tiro bem mais superior a ak-47:
      Ex. M4a1/H&K G3(a nova)/ruger ou da familia da ak AK-103 e ak-107.
      Devido a fama da ak-47 tornousse a arma mais falsificada do mundo, ou seja e dificil consguir uma original.
      Espero que tenha ajudado.
      E ja agora parabens pelo blog, achei muito interessante.

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    3. Caro Anónimo

      Muito obrigado pelas informações que aqui partilhou.

      Fico muito contente por ter gostado do Blog e esteja à vontade para qualquer correcção ou comentário. Prefiro saber que estou errado do que ficar errado toda a vida. :)

      Os melhores cumprimentos,

      António

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    4. Já agora, se puder veja o documentário do Ekranoplan e diga-me o que acho. Considero aquela história formidável e, pela conversa que aqui estamos a ter, acredito que o interessará.

      http://oreivaivestido.blogspot.pt/2012/04/ekranoplan-o-monstro-do-mar-caspio.html

      Cmps,

      António

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