segunda-feira, 9 de julho de 2012

O meu primeiro dia na Palestina

Check Point de Qalandia - Palestina
Muitos dos artigos que vou escrevendo neste blog são resultado de investigação de terceiros. Pensamentos dos autores que mais me vão impressionando, alguns vídeos e documentários que considero particularmente interessantes e críticas a livros sobre os principais assuntos que aqui são analisados. Mas, na realidade, não foi esse o objectivo inicial de ter criado este blog. Também não foi o de criar um espaço de discussão, embora muitas vezes se tenha tornado precisamente nisso, o que me tem dado muito prazer e - não sendo totalmente inesperado - tornou toda esta experiência mais rica e completa.

Desde 2006 que tenho passado mais tempo no Médio Oriente do que na minha terra natal. Fui acumulando experiências que, por questões de segurança pessoal e carreira profissional não podia contar publicamente no momento em que aconteceram. Em especial nos 3 anos que vivi na Palestina, a minha presença foi suscitando interesse das autoridades israelitas que compreensivelmente queriam controlar o que eu lá estava a fazer e o motivo das minhas constantes entradas e saídas. Uma vez que neste momento já deixei de ter que viajar para Israel e para a Palestina, todas essas experiências podem agora ser contadas sem que eu corra riscos de maior. Na sua maioria, não serão substancialmente diferentes das que vão encontrar descritas pelos correspondentes internacionais, pelos voluntários das inúmeras ONG's que por lá populam e dos mediadores que continuam a procurar uma paz duradoura sem grande sucesso. Mas é importante que estas histórias sejam contadas, para que se juntem a milhares de outras, para que a história contemporânea da Palestina possa ser contada com o máximo de testemunhos possíveis, em vez de estar constantemente refém de meia dúzia de fontes que, mesmo sendo extremamente credíveis, nunca serão demais.

Assisti a muitos pequenos acontecimentos que não foram relatados em nenhum jornal. Ouvi histórias da boca dos palestinanos que parecem demasiado incríveis para serem verdade. E também passei muitos dias perfeitamente aborrecidos e pacíficos onde chegava a casa para ver que tinha dezenas de mensagens de amigos e familiares preocupadíssimos porque tinha aparecido uma notícia dramática nos media que no terreno nem notávamos que tinha acontecido. Tipicamente era discutida ao pequeno almoço com o mesmo distanciamento que se estivéssemos a falar do Tibet.

O relato que se segue é da experiência de entrar na Palestina pela primeira vez. Já tinha sonhado e imaginado este momento durante meses. Três amigos meus trabalhavam num projecto em Ramallah e tentavam convencer-me a incorporá-lo. Na altura residia no Dubai já há alguns anos, lugar onde me sentia perfeitamente em casa mas que já tinha pouco de novo para me mostrar. Aproveitava os tempos livres para viajar pelo Médio Oriente usando desculpas mais ou menos típicas de mergulho, visitas de amigos e familiares e as inevitáveis visa trips, fui conhecendo toda a região. Estas últimas (visa trips)referem-se às viajens forçadas de saída dos Emirados e nova entrada para conseguir mais um mês ou dois de visto de turista. Como existia sempre alguém com o visto prestes a expirar, era normal fazer uma visita a Oman - por vezes apenas por breves minutos - ou então aproveitar para ir ver algum país na região durante um fim de semana. A escala a que isto acontece é tal que quando aterramos no Bahrain, as hospedeiras de bordo avisam para as as pessoas que estão em visa trip nem se levantarem pois as autoridades carimbam o passaporte nos próprios lugares. Quando visitei o Bahrain cerca de metade dos passageiros não chegaram a por um pé em terra. Limitaram-se a receber o carimbo e voltar para trás.

Acabei por aceitar o convite feito pela empresa indiana para trabalhar na Palestina num sistema misto em que passava umas semanas em Ramallah e outras no Dubai, dependendo das necessidades do projecto que estava previsto durar pelo menos um ano. Era um projecto de informática cujos detalhes aborreceriam de morte os meus leitores, mas onde vale a pena explicar que tínhamos um pequeno grupo (uns 6 a 8) consultores onsite enquanto a equipa de desenvolvimento e testes se encontrava na Índia, mais precisamente em Hyderabad.

Na primeira semana de Fevereiro de 2008 ainda de madrugada embarquei num A320 da companhia aérea Royal Jordanian do aeroporto internacional do Dubai a caminho de Amman, capital jordana. Uma vez que a esmagadora maioria dos países do médio oriente ainda mantém (no papel) um estado de guerra com Israel, e a Palestina não tem um aeroporto próprio (tinha um em Gaza mais foi bombardeado e fechado em 2001[1]), a melhor hipótese para fazer esta viagem é indo até à Jordânia e seguindo depois por terra.

Passado umas 3 horas aproximamos-nos do pequeno mas prático Aeroporto Queen Alia, cujo nome é uma homenagem à bela e jovem rainha jordana falecida num desastre de helicóptero e que curiosamente tinha sido hospedeira de bordo da mesma Royal Jordanian[2]. Um dos meus escritores favoritos não resiste, cada vez que fala neste aeroporto, a dizer que "é o único aeroporto do mundo com o nome de uma pessoa que morreu num acidente aéreo". Como portuense, I know better, já que o aeroporto internacional da minha cidade foi rebatizado em 1990 de Aeroporto Francisco Sá Carneiro[3]. Mas talvez Robert Fisk tenha razão, e o Queen Alia seja mesmo o único com o nome de uma vítima de acidente aéreo. E talvez a nós nos caiba o exclusivo de ter um aeroporto com o nome de uma vítima de um atentato à bomba num avião. E é com estes pensamentos perfeitamente adequados a quem está dentro de um avião que chego pela primeira vez ao reino hashemita. Adiante...

Um dos meus colegas, um brasileiro com quem trabalhei em diversas ocasiões e que é como um irmão para mim, já tinha percorrido o "caminho as pedras", detalhando cada passo desde que iniciava a viagem no Dubai até à chegada a Ramallah. Mas também me avisou das atribuladas viagens que me esperavam. De Amman até à ao rio Jordão, fui transportado por um carro alugado e a viagem correu bem, embora eu tenha ficado impressionado com a quantidade de neve de ambos os lados da estrada. Eu praticamente nunca tinha visto neve na minha vida. Recordo-me de uma ou duas vezes em pequeno. Também umas semanas antes de emigrar para o médio oriente em 2006, que nevou qualquer coisinha em Lisboa. E estou a descontar a neve do Ski Dubai que não conta porque é um frigorífico gigante. E subitamente, de todos os lugares à face da terra, é no Médio Oriente que a vou encontrar em maior quantidade. Depois de uma hora por umas estradas de qualidade discutível, chego à fronteira da ponte Allenby (segundo os israelitas) ou ponte Rei Hussein (segundo os jordanos).

Depois de gastar os 100 dólares mais mal gastos da minha vida entrei no serviço VIP de passagem da ponte, que significa que a espera é feita em sofás a travessia de umas centenas de metros é feita numa Toyota Hiace em vez de num autocarro e temos direito a café no lado jordano e água engarrafada do lado israelita. Conselho de amigo, a não ser que os 100 dólares não vos saiam do bolso, poupem-nos para qualquer outra coisa.

Atravesso o rio onde João Batista batizou Jesus e tantos outros seus contemporâneos há dois milénios atrás com grande expectativa. Mas o rio mal se via. Aliás, provavelmente a palavra riacho ou fio de água seria mais apropriada, mas não faz mal. As bandeiras com a estrela de David aparecem subitamente de ambos os lados da estrada e deparo-me com o primeiro de muitos check points a que nunca me viria a habituar nos anos que por ali passei.

À chegada, somos separados das malas e depois enviados para uma pequena sala de espera com dois sofás e um quadro desgastado de "A criação de Adão" do tecto da Capela Sistina. Com o tempo vamos aprendendo a lidar com esta espera, com os interrogatórios que se seguem e a frustração de ninguém dar informação nenhuma. Dependendo do quanto gostam de nós, podemos esperar 2 ou mais horas, sendo que o meu recorde vai em cerca de seis horas e meia. Um dia destes eu dedico aqui um artigo só às aventuras da ponte Allenby e do aeroporto de Ben Gurion.

E ao fim de umas 3 ou 4 horas lá consegui sair para descobrir que o taxista tinha desistido de esperar e estava basicamente sozinho no meio do deserto de rocha que cobre aquela zona do Mar Morto. Depois de conseguir encontrar um taxi amarelo (i.e. um taxi palestiniano que têm que ficar a uns 2 Kms de distância do edifício da ponte) começamos a longa subida desde Jericó por entre montanhas até às zonas mais altas de Ramallah.

Por esta altura ainda estava bastante confundido. Alguns carros tinham a matrícula palestiniana e outros israelita. Claramente quem mandava nesta zona era Israel, já que os carros da polícia eram destes. Também se viam ocasionalmente veículos militares embora não fossem assim tão frequentes. Só ao fim de uns 40 ou 50 minutos de viagem, já bem dentro do país é que vi os grandes quartéis militares israelitas, com os jipes e camiões todos alinhados e em números bastante elevados (na ordem das muitas dezenas), a uns 100 metros da estrada e bem à vista. Foi nesta mesma estrada que uns meses mais tarde vi os imponentes tanques israelitas Merkava, de que falei num artigo escrito em Abril deste ano. Embora olhando para o mapa de um dos muitos Lonely Planet que fui acumulando eu estivesse em plena Palestina - mais precisamente na Cisjordânia - a verdade é que os palestinianos estavam (e estão) muito longe de ser donos e senhores desta região. A Palestina assemelha-se muito mais a um arquipélago de cidades controladas pela Autoridade Palestiniana enquanto o grosso do território é vagamente controlado pelas autoridades militares israelitas. Para tornar a situação ainda mais complicada, mais de meio milhão de israelitas vivem em colonatos ilegais[4] espalhados pela Cisjordânia e Jerusalém Oriental[5].

A Barreira de Segurança
Mas verdadeiramente marcante terá sido mesmo a visão da chamada Barreira de Segurança seguido de Qalandia. Em inglês o termo utilizado pelo governo israelita e os seus apoiantes é de security fence, onde fence lembra as divisões de madeira branca que separam as moradias nos bairros mais seguros americanos. Na realidade é uma muralha. De cimento. Alta. A perder de vista como se fosse uma muralha da China dos tempos modernos. Finalmente chegamos até Qalandia, o grande Check Point que liga Jerusalém a Ramallah com as suas torres, arame farpado, barreiras de cimento nas estrada e um aparato militar bem visível . As paredes estão (do lado palestiniano) cobertas de grafitis dos heróis óbvios, como Yaser Arafat e Marwan Barghouti, mas também com alguns bastantes mais inesperados e criativos tais como pinturas de Ghandi ou um famoso e extremamente simples "CTRL + ALT + DEL".

Grafiti pedindo a libertação de Barghouti
Infelizmente não me foi possível nessa primeira passagem apreciar a arte moderna nas paredes pois quando estava mesmo em frente à entrada principal começaram distúrbios entre um grupo de crianças e adolescentes palestinianos com os guardas israelitas. Com o meu taxi amarelo preso no trânsito totalmente parado, quando se começaram a ouvir os primeiros tiros fiquei sem saber bem o que fazer: sair do taxi para o meio da confusão com os carros todos bloqueados e as pessoas a fugirem entre os automóveis não parecia uma grande ideia. Por outro lado ficar ali enquanto os soldados avançavam na nossa direcção com as armas apontadas também poderia ser uma forma bastante passiva de levar com um tiro. Dado leque de opções que se abriam, optei pela terceira que foi enterrar-me entre os bancos. Como ainda senti uma certa vergonha na cara por ver o taxista impávido e sereno no meio deste faroeste, perguntei por sinais e um inglês especialmente básico se deveria mergulhar (fiz uns movimentos do tipo salto olímpico para a piscina imitando a linguagem futebolística compreendida por todo o planeta). A resposta veio imediata e directa: No... rubber bullets. Notei um certo ar de gozo no motorista, mas nesse momento tinha maiores preocupações do que o meu frágil ego de Lawrence da Arábia. Os tiros continuaram durante mais uns minutos (ou seriam segundos?) enquanto o meu pensamento voava entre "como raio é que ele sabe que as balas são de borracha?" e "será que alguém vai olhar para o meu ar de estrangeiro e achar que sou um israelita infiltrado" até - obviamente - ao "talvez isto de vir para a Palestina não tenha sido um dos meus momentos mais inteligentes...". Mas o senhor lá devia ter razão porque um miúdo por volta dos seus 10 anos e que ia a correr entre os carros levou um tiro numa perna mesmo ao meu lado e continua a correr, embora se contorcesse de dores enquanto o fazia.

E assim passou minha primeira aventura pela terra santa. Passados uns 15 ou 20 minutos, chegava ao compound onde fiquei durante grande parte dos anos que se seguiram, recebido por guardas de AK-47 ao bom estilo revolucionário e encontrando os meus velhos colegas de paragens anteriores. Não mais de uma hora passada, estava sentado com eles e com um palestiniano de quem me viria a tornar bom amigo enquanto bebia uma merecida Corona no clássico bar Sangrias no centro de Ramallah. Para minha surpresa, fartaram-se de rir de mim e invejaram-me porque andavam aborrecidos porque não havia nada para fazer. De facto, passei dezenas e dezenas de vezes por Qalandia depois disso, mas nunca voltei a ouvir tiros por lá. E esta história, ficou durante muitos meses escondida de todos os que me eram próximos excepto aos que foram ou planearam ir mesmo a Ramallah. Agora, à distância, ela tem bastante mais interesse e já não preocupa nenhum familiar. E confesso que tenho imensas saudades da Palestina.

[Nota do Autor: as fotografias foram retiradas da internet]

5 comentários:

  1. Boa noite

    Mais uma vez o anónimo do costume, antes de mais quero parabeniza-lo pelo exelente texto e os promenores nele contido.

    Já visitei algumas das grandes capitais Europeias, Paris, Madrid, Barcelona, Roma, Berlim, Moscovo, e até mesmo o campo de concentração auschwitz, e o que restou da civilização Inca (Machu Picchu) que é de tremenda beleza.


    Nunca o Médio Oriente me despertou assim tanta curiosidade como agora, muito menos as questões politicas daquela região, devo dizer que seu blogue fez mudar a minha visão e opinião acerca do Médio Oriente e Palestina, pois a sensação que os mídia dá a cerca da Palestina por vezes e distorcida e distante da realidade, tornado a Palestina por vezes o vilão e o Estado de Israel o ''menino bonito''.

    É sempre bom ler algo de alguém que sentiu e viveu no meio desta ''rivalidade'' (à qual eu chamava mesquinha), e sentiu na pele, aquilo que muitos comentavam de forma injusta (como era o meu caso), sobre algo que poucos poderam viver.

    Espero de ir um dia ao Médio Oriente mais particularmente Irão, pois a civilização Persa sempre me despertou a minha curiosidade, mas por questões obvias (segurança) não irei nos próximos tempos ou anos.

    Continue com o optimo trabalho que tem vindo a realizar, e partilhe mais histórias com os seus seguidores.

    Desde já agradeço sua atenção e os melhores cumprimentos.

    Fàbio Gomes

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bom dia Fábio

      Muito obrigado pelas suas palavras e pelo seu apoio.

      O Médio Oriente é de facto um tema apaixonante e por mais que uma pessoa se debruce sobre ele não parece nunca ter fim. Também não é um assunto fechado com as guerras de Napoleão ou do Império Romano. Tudo continua a acontecer numa base diária, levando-nos constantemente a por em causa o que já sabemos.

      Mas entre vilões e meninos bonitos, tenho-lhe a dizer que a sensação que tenho é que entre a elites da região, só há mesmo vilões. Um ou outro líder mostraram um pouco mais de tempos a tempos, mas regra geral só com muito esforço é que conseguimos gostar de algum. Khatami, no Irão, fez-me acreditar que as coisas poderiam mudar, mas foi encostado pelos Mullahs. Rabin fez muito pela paz, mas também tem muito sangue nas mãos. O mesmo pode ser dito de Arafat, Sharon, Assad e Mubarak. A lista é enorme. Todos monstros e todos santos em diferentes momentos do tempo. Ou talvez sejam só humanos, mas com demasiado poder nas mãos.

      Falava no Irão, um país pelo qual tenho imensa curiosidade mas que nunca tive oportunidade de visitar. Conheci bastantes iranianos e simplesmente não encaixam nas descrições que vejo na televisão. Claro que fora do seu regime opressivo mostram mais do que pensam e do que são do que alguma vez o fariam na sua terra. Mas mais tarde ou mais cedo espero lá ir. Pelo que sei é bastante seguro, embora controlado.

      Os melhores cumprimentos,

      António

      Eliminar
  2. Ouvi esta história na primeira pessoa e fico feliz que a tenhas partilhado. Vale a pena.

    A minha primeira entrada no território não foi tão interessante. Foi apenas chata, com interdição de entrada num dos aviões da EL AL em Bruxelas, desvio de rota para Londres de onde viajei para Tel Aviv. Chegado a Israel, após três voos, ficar sujeito ao interrogatório, que se viria a tornar habitual, no Ben Gurion, e a infeliz descoberta de que a bagagem tinha ficado retida em Bruxelas e só chegaria dali a 3 dias. Daí para Ramallah foi um instante e recordo bem a primeira passagem por Qalandia e respectiva entrada em Ramallah. Poderia dar a minha descrição mas, sinceramente, prefiro a tua história.

    Tudo isto para dizer que a Palestina, com todas as suas peripécias e surpresas, de Ramallah a Nablus, dos checkpoints aos cafés e, acima de tudo, as suas pessoas, deixou saudades. Bem, os checkpoints nem tanto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Essa viagem foi interessante sim, agora vista á distância. Barraram-nos em Bruxelas, impediram-nos de entrar no voo e seguraram-nos as malas. Depois de muito griteiro lá chegamos a Ramallah prontos para ir trabalhar a cheirar a "voo de 24 horas". :P

      E ainda tivemos que ir a Jerusalém buscar as malas quando elas apareceram, porque se recusavam a entregar-nos no hotel onde estávamos.

      Mas enfim, já tinha voado na El Al umas vezes. Aí perdi a paciência e não voltei a dar-lhes um shekel.

      Eliminar
    2. "à distância..." em vez de "á distância".

      Se a minha mãe vê isso já levo nas orelhas. :)

      Eliminar