segunda-feira, 2 de julho de 2012

Sobre vítimas e agressores

Fico pasmado com a quantidade de pessoas que parecem ter tantas dificuldades com um conceito tão simples como é o de culpa. Um caso típico é que quando sai uma notícia de uma violação, existem sempre algumas pessoas que perguntam como é que mulher estava vestida e o que tinha feito antes. E - claro - no caso de esta estar vestida de mini-saia ou ter tido algum comportamento menos cuidadoso (tipicamente ter dançado ou bebido álcool) então a vaga de opiniões culpando-a do acontecimento torna-se massiva. Rapidamente o verdadeiro agressor desaparece da história e o evento passa a ser tratado como se de uma força da natureza se tratasse. Como se não tivessemos construido um prédio para poder aguentar sismos de magnitude baixa ou se cometêssemos o erro de tentar nadar com um mar verdadeiramente perigoso. Uma violação não é um act of God! Não é resultado de uma rapariga estar mais ou menos vestida ou de ter tido a imprudência de estar no lugar errado na hora errada. É um crime cometido por um criminoso que não tem o mais pequeno respeito pela vítima. Compreendo que existem casos mais cinzentos, onde é difícil para a justiça ter uma noção exacta do que se passou ou cujos testemunhos possam ser pouco credíveis. Mas mesmo isso, não significa que a culpa seja da vítima.

Portugal tem um track record particularmente vergonhoso no que toca a este assunto depois da famosa decisão da "coutada do macho ibérico"[1]. Num parágrafo verdadeiramente assombroso do acordão de 18 de Outubro de 1989[2], conseguimos encontrar o seguinte:

Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado «macho ibérico». É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la.

Só para a minha posição ficar absolutamente clara. Mesmo que uma rapariga estivesse na rua completamente nua a sorrir para todos os homens que passassem, isso não daria o direito a absolutamente ninguém para ter relações sexuais contra a sua vontade.

Mas o problema está longe de ser um exclusivo nacional. Em Agosto de 2006 trabalhava no Médio Oriente numa equipa que integrava um grande grupo de brasileiros. Subitamente todos as televisões e jornais portugueses abriram com a notícia de um português morto na praia de Copacaba no Rio de Janeiro, na sequência de uma tentativa de assalto e a curta distância de um posto da polícia carioca[3]. Os homicídios são em Portugal relativamente raros e dignos de notícia. Ainda bem que assim é. O Brasil pelo contrário sofre de uma epidemia de assassinatos que ultrapassa mesmo o de países em guerra, tais como o Afeganistão, a Somália ou o Sudão. Só em 2010 esse número chegou aos 50.000[4]. Não foi por isso estranho que os meus colegas brasileiros mostrassem alguma surpresa inicial por o assunto estar a ser tratado com tanto destaque pelos media portugueses. Mas a parte mais interessante foi quando circulou que a vítima estaria com um máquina fotográfica pendurada ao pescoço. Os comentários passaram para qualquer coisa do género "Mas o que é que ele estava à espera?". Rapidamente o agressor deixou de existir para se concentrarem todos na falta de cuidado da vítima. Ninguém deve ser ingénuo ao ponto de ignorar os riscos do sítio em que está, mas isso não faz dele culpado do crime. E eu não conheço nenhuma lei nacional ou religiosa onde o "crime" de ingenuidade seja punido com pena de morte. Cada um destes inocentes que são assassinados no Brasil são vítimas. Mesmo que nesse momento tenham sido pouco cuidadosos, ingénuos ou demasiado corajosos for their own good.

E como isto é um daqueles assuntos que ciclicamente volta, tivemos esta semana mais um caso que segue rigorosamente a mesma lógica retorcida. Durante os festejos da Praça Tahrir, depois da vitória de Morsi nas eleições presidenciais do Egipto, a jornalista freelancer inglesa Natasha Smith foi violentamente atacada e sexualmente abusada por dezenas de homens. A jornalista decidiu descrever todo o acontecimento no seu blog, num artigo entitulado "Please God, make it stop" que nos mostra um relato detalhado dessas horas e que deveria dar a volta ao estômago a qualquer ser humano com uma réstia de moral[5]. A notícia apareceu também no jornal Expresso[6], onde alguns comentadores se apressaram a dizer barbaridades do género "Bem feita", "Mulheres, ou até homens, a viajarem para países muçulmanos, estão mesmo a pedir sarilhos", "Risonha na foto, até parece um sorriso de triunfo", "carne fresca", "alguém a obrigou?", "Ela confessa em algum lugar o que ela LUCROU com isso?", "Quem se mete na boca do leão arrisca-se", etc. Tenho a certeza que se for procurar a outros jornais online, encontrarei centenas de outros comentários a seguirem a mesma linha.

Não consigo compreender quem poderia defender o indefensável. Quem poderia achar que um grupo de homens não poderia fazer outra coisa senão violá-la e que - no fundo - tudo isto acaba por ser decisão dela. Como se os homens fossem animais selvagens que não se conseguem controlar. Mas imagino que os mesmo homens que fizeram isto na praça Tahrir provavelmente estarão a defender nos seus jornais online e nas suas mesas de café que ela "estava a pedi-las".

(Fonte da Imagem: www.thesun.co.uk)

2 comentários:

  1. a única coisa que me ocorre dizer é "graças a deus" embora não seja católica, finalmente alguém coloca por palavras aquilo que sempre tento exprimir e acabo por reprimir devido à opinião pública
    é bom saber que alguém tem a mesma opinião que nós. Já o citei (com os devidos créditos) no meu blog.
    obrigada por existir

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    1. Cara Ana

      Muito obrigado pelas suas palavras.

      Infelizmente muita destas ideias bárbaras estão de tal forma divulgadas que serão precisas gerações inteira para que estes preconceitos passem.

      Os melhores cumprimentos,

      António

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