terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Dívida Pública vs Dívida Privada

Existe uma corrente de pensamento em Portugal que defende que não existe nenhum problema grave com a dívida pública nacional, e que o verdadeiro drama encontra-se na dimensão da dívida privada, i.e. das famílias e das empresas (não controladas pelo estado).

Começo por dizer que discordo totalmente. A dívida privada tem que ser vigiada, mas é mesmo nas contas públicas que está o motivo da nossa ruína. É verdade que não tenho acesso aos números internos dos bancos e outras instituições financeiras que estarão em condições de fazer uma análise mais detalhada sobre o assunto, mas existem diferenças grandes entre estas dívidas, os activos que as sustentam e a forma da sua liquidação.

A dívida do estado é enorme face aos seus rendimentos. Embora seja comum representarmos a dívida pública em percentagem do PIB, acho que vale a pena olharmos para a dívida pública em percentagem das receitas do estado. O motivo é simples: da mesma forma que eu não vejo o meu grau de endividamento pessoal em comparação com os rendimentos do prédio todo, também o estado analisar o seu índice de endividamento anual pelo desvio em relação ao que tinha para gastar. Claro que os rendimentos do país inteiro têm uma relação com o valor dos impostos cobrados, no entanto esse dinheiro não é do país, mas sim dos seus habitantes.

Assim, fazendo as contas do deficit orçamental face ao que o estado de facto recebe, facilmente chegamos à conclusão de o déficit real é de 24%:

Despesa do Estado em 2010: 88.000 Milhões de Euros
Receitas do Estado em 2010: 71.000 Milhões de Euros

Déficit Orçamental em Percentagem das receitas: 24%

Isto dá-nos uma ideia da dimensão e velocidade a que o nosso estado se tem estado a endividar. Podemos ainda acrescentar que não há memória de um superavit orçamental, pelo que o passivo aumenta todos os anos que passam. Para além disto, a desconfiança dos investidores fez com que os juros disparassem e atingiram valores recordes nos últimos 2 anos. Esta espiral tem tendência a piorar enquanto o estado mantiver deficit orcamentais crónicos e superiores ao crescimento dos impostos cobrados (seja via crescimento ou via aumento de impostos).

Um outro factor a ter em conta é o destino desse dinheiro emprestado ao estado. Olhando para o orçamento de estado, podemos ver que na sua esmagadora maioria vai para salários, pensões e estado social, ou seja, despesa importante para o presente e futuro do país, mas sem retribuição directa. Podemos vê-la como um investimento mas só a muito longo prazo e sem retorno garantido (basta ver a despesa com a educação que depois é oferecida a outros países via emigração). A um nível pessoal, é como um habitante que acredite tanto na importância da sua saúde e educação que gaste 110% do seu salário anual em clínicas e cursos para garantir que está sempre em forma e devidamente educado para aproveitar todas as oportunidades e mais algumas. Se o fizer indefinidamente, certamente que acabará sem nada, endividado e sem capacidade para pagar mais nenhuma consulta ou curso. Em algum momento - antes, durante ou depois - ele terá que trabalhar para pagar todas essas despesas tão relevantes. O mesmo acontece em relação ao estado, com a diferença que quando é preciso trabalhar, a lei permite-lhe forçar os cidadãos do país a resolverem-lhe as suas contas através de impostos ou recusando-se a cumprir as suas promessas.

No caso da dívida das famílias, o destino é bastante diferente. Na sua maioria existe um activo a compensar o passivo. Por exemplo, quando pedimos dinheiro para comprar uma casa, essa mesma casa é dada como garantia. No caso de incumprimento o credor fica com o imóvel. A dívida das empresas pequenas tipicamente é tratada da mesma forma que a dívida das famílias, obrigando a empresa ou os sócios a comprometerem os seus activos no empréstimo. Tudo isto leva-nos a que não seja possível avaliar o sobreendividamento das famílias sem olhar também para o valor dos seus activos e a sua capacidade de cumprimento do empréstimo. Com as rendas a um nível muito elevado, contratos de trabalho muito fixos e pouca mobilidade, a opção de compra de casa foi certamente a opção lógica para a maioria das famílias portuguesas. A inexistência de um mercado de arrendamento funcional, faz com que o nosso país tenha um endivadamento das famílias acima do que seria natural, mas não necessariamente que esse endividamento seja errado ou não possa ser pago.

O que acabei de descrever não acontece no estado. O seu passivo é utilizado para despesas correntes e vive em constante déficit. Os 100 mil milhões de endividamento que o estado acrescentou nos últimos anos ao seu passivo não serviram para comprar ouro ou qualquer outro activo que possa ser vendido para saldar a dívida. O dinheiro simplesmente saiu dos cofres do estado em gastos correntes e não vai voltar às mãos do estado. Acrescento ainda que as famílias endividam-se a comprar casa, mas depois durante 20, 30 ou 40 anos vão tratando de reduzir esse passivo até chegar a zero (tipicamente aponta-se para que isso aconteça na entrada da idade da reforma). Ou seja, vivem com superavits estruturais que suplantam os juros que pagam e que colocam o passar do tempo a seu favor. Com deficits estruturais os estados fazem exactamente o contrário, dívidas crescentes que só não vão até ao infinito porque em algum ponto os credores vão inevitavelmente recusar-se a disponibilizar mais dinheiro.

Por todos estes motivos, e mesmo sabendo que a dívida externa privada é um assunto sério e à qual nos devemos manter atentos, considero que a dívida pública foi, é e continuará a ser o maior problema financeiro do nosso país.

5 comentários:

  1. Seria interessante que em vez de afirmar, por exemplo, que "na sua esmagadora maioria vai para salários, pensões e estado social" desse os números e, para melhor compreensão, não se limitasse a falar de um ano financeiro mas de, pelo menos, uma década.
    O endividamento privado, por outro lado e como você sabe, não se limita ao endividamento familiar que, já por si, não é o quadro cor-de-rosa que pinta, nem para as famílias, nem para o Estado, nem para as próprias instituições credoras.
    Analisar o "problema financeiro do nosso país" apenas por um dos seus contributos, creio eu, não será de todo útil.
    Por fim, sugerir que uma execução orçamental positiva ou nula, era a resolução dos nossos problemas financeiros é uma afirmação básica e simplista.

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    1. Caro António Vaz,

      Antes de mais agradeço-lhe a amabilidade de ter vindo espreitar e comentar o meu blog.

      Os números que usei antes de publicar o texto foram retirados da Pordata (http://www.pordata.pt/) embora eu já os tivesse visto antes em publicações várias. De qualquer forma aceito a crítica e procurarei ter mais cuidado a incluir as fotos em posts futuros.

      De facto utilizei um ano a título de exemplo, e que era o último para o qual consegui encontrar números finais. Em breve teremos as contas de 2011 que deverão apontar no mesmo sentido, embora provavelmente menos graves em termos de dívida (e bem mais graves em termos de crescimento).

      Quanto ao endividamento privado, sem bem que não é apenas nas famílias, embora a esmagadora das empresas privadas (micro e pequenas) acabem por ter um comportamento semelhante no que se refere à necessidade de contrapartidas (activos) como garantia do empréstimo. Não considero que seja um quadro cor de rosa de todo nesse campo. O aumento do desemprego, decréscimo da procura e desvalorização generalizada dos bens imóveis (para além da falta de liquidez) têm aqui um impacto grave e que está a provocar um aumento do incumprimento de dívida particular e empresarial o que leva a um aumento do juro cobrado (e o seu efeito vicioso de com isso aumentar o risco de incumprimento). Não considero que seja um problema pequeno, apenas penso que o problema da dívida pública é muitíssimo maior por não ter activos que possam ser usados como compensação.

      Resumindo, ao contrário do que muitos dizem agora (que o problema está na dívida privada e não na pública), eu continuo a achar que o déficit e a dívida pública são muitíssimo mais graves.

      Quanto à execução orçamental positiva, eu sinceramente acho que é mesmo daí que se deveria partir. Pelo menos em relação aos gastos correntes. Deveríamos ter superavit nos anos bons, e provocar déficit nos maus. Não me importo de ver deficit de investimento, cujo retorno esperado supere os juros do investimento.

      Não era bom estarmos a discutir onde vamos investir o nosso fundo soberano em vez de rezarmos para conseguir pagar a nossa dívida soberana?

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  2. Primeiro acho que o problema da nossa dívida, pública e privada, vem de um problema maior, que é o não crescimento. Mas isso também já está mais do que debatido e rebatido.

    No que respeita à diferenciação que fazes entre a dívida pública e a privada não posso concordar, já que as duas estão completamente ligadas. Basta pensares que o Estado representa mais de 50% do nosso PIB. Para além disso, 6 milhões de pessoas em Portugal vivem de salários, pensões ou prestações sociais pagas pelo Estado e se a torneira fechar, essas pessoas deixam de pagar os tais juros aos bancos. E mais acrescento que uma grande parte das nossas empresas vive de trabalhar para o Estado e mais uma vez se a torneira fechar...

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    1. Concordo em absoluto que o crescimento anémico é suicída. Principalmente quanto isso se prolonga por décadas e não por períodos curtos de ajustamento.

      Sobre o peso do estado da economia, também concordo que a dimensão é enorme. É precisamente isso que me assusta. Não consigo compreender como é possível termos chegado a este ponto. Percebo que fechar a torneira causaria mais mal do que bem, mas não me parece sustentável continuar a piorar o problema ficando cada vez mais gente a depender do estado, dívida pública a crescer e estado a injectar dinheiro na economia com um efeito reduzido no crescimento. Se o estado se endividasse em 1% do PIB para provocar 2% de crescimento, provavelmente compensaria. Mas o que temos é o contrário, o que coloca o tempo contra nós.

      Quanto às empresas penduradas no estado... isso parece-me ser a maior fonte de corrupção do nosso país. Mas isso é uma conversa longa...

      Obrigado pelos comentários construtivos. Espero continuar a vê-los por aqui. Abraços

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  3. Passaram 6 ou 7 meses sobre este escrito e este Estado, melhor, este governo continua surdo e cego na sua avalanche de opções altamente prejudiciais para todos nós e para o futuro do país, parece que obedecendo a uma voz superior. Este governo é completamente autista não reage a manifestações, não reage ao empobrecimento acelerado, aos despedimentos em catadupa, ao fecho descontrolado das médias e pequenas empresas. Parece que enlouqueceram, mas todos sabemos que não enlouqueceram, aliás todos sabemos que eles também pensam e ouvem e vêem os mesmos jornais que nós e ouvem os mesmos conselhos que nós ouvimos sobre o que está a acontecer ao país. Por isso a atitude governativa que estão a ter é 100% consciente, o resultado que está a surgir no desemprego, no desencantamento geral da população no sofrimento das pessoas, no desespero geral é o objectivo esta forma de governar, destas opções tomadas. Mas isto está a acontecer na Europa, na Grécia, na Espanha, na Irlanda, na Itália mas também na Alemanha (que até está à beira de eleições) e não só em Portugal por isso é preciso entendermos onde é que estes governantes Europeus querem chegar...está claro para todos que principalmente quer-se baixar o preço do trabalho... será que a China afinal levou a avante sobre a exploração do trabalho (ditadura do proletariado)e nós europeus deixamos de os criticar na sua política de não defesa dos direitos humanos e porque não os vencemos nos juntamos a eles??? É claro ou não que a China (e outros países daquela região) estão a inundar o mercado mundial ocidental com todos os seus produtos, é claro ou não que o mundo ocidental tem que entrar nesta guerra de preços em que o preço da mão de obra é fundamental no preço final dos produtos??? Claro que sou/estou/estarei contra esta política mas não é isto que se está a passar? E, pensam estes governantes de direita, que é a melhor altura de implemento da teoria fascista da economia, ordenados miseraveis e cada vez menos empresários mas mais ricos. Não é este o pensamento de Mitt Romney, que se lixe 47% da população norte americana que não produz o necessário e vive antes de subsídios???
    Que fazer perante isto???

    Luís Correia
    Figueiró dos Vinhos



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