sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Et tu Catarina?

Bastaram umas semanas para que o salário mínimo nacional de 600 euros proposto pelo Bloco de Esquerda no seu programa eleitoral[1] cair. Há menos de um mês "A urgência é a criação de emprego, a reposição integral dos salários cortados e o aumento do salário mínimo nacional para 600 euros" (p.11 do manifesto legislativas 2015 publicado no site oficial do BE). Agora a porta-voz Catarina Martins diz-nos "Seria demagógica se dissesse que seria possível ter 600 euros em 2016, não é possível".

Na primeira vez que lhe cheirou a governo (alguns diriam tachos, mas não me parece que devamos ir tão longe) o Bloco desistiu já à cabeça daquela que seria a mais importante e marcante decisão para tantos portugueses que mesmo trabalhando a tempo inteiro não conseguem sair de uma situação de pobreza como tão bem explicou Mariana Aiveca, deputada do Bloco de Esquerda na Assembleia República em 2013[2]

O que é curioso é que neste caso não existe sequer a desculpa habitual. Tipicamente os governos entram em funções e rapidamente informam o país, com um ar de grande consternação de que as informações a que agora estão a a ter acesso mostram que a situação do país era pior do que o governo anterior tinha informado. Nesse sentido, os objectivos do programa eleitoral têm que ser redefinidos e avaliados e não demora até que caiam todas as propostas originais que tenham qualquer tipo de custo financeiro associado. Depois de umas semanas falando sobre a possível criminalização por gestão danosa dos anteriores governantes, o assunto é atirado para o esquecimento até às legislativas seguintes.

Mas isso não aconteceu a Catarina Martins, Mariana Mortágua e o resto da trupe. Bastou sentarem-se a conversar umas horas com António Costa (que não sendo governo não tem ainda acesso a nenhuma informação nova) e já nos veio dizer que 600 euros é demagogia. Ou seja, que o seu próprio plano de governo é demagogia. Pois demagogia é apenas uma palavra cara para... mentira. O Bloco de Esquerda não demorou a tornar-se em tudo aquilo que sempre viu nos outros. Mas enfim, só tinham duas hipóteses: ou destroem o país ou são mentirosos. Se vão mesmo chegar ao governo, eu agradeceria se não destruissem o país a um ponto que não dê para o recuperar.

PS: Acrescento apenas que é de facto uma pena vermos o BE perder a sua inocência. É que em muitas situações, a posição política do BE era de facto um lufada de ar fresco, como nas questões da Palestina, no caso de Luaty Beirão, Rafael Marques e em muitas outras questões de direitos humanos onde o BE é sem dúvida o partido que tem consistentemente estado do lado certo da história.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Governo de Destruição Nacional

Já há muito que António Costa nos mostrou o que valia: Quando Lisboa precisou de cultura, tentou roubar o Red Bull Air Race ao Porto. Quando precisou de limpar dívida, passou-a para o Estado central. Quando precisou da liderança do PS, rasgou o acordo com que tinha feito com José Seguro apenas uns meses antes e atirou-o pela janela. Não deveria ser por isso estranho que mesmo depois falhar o seu objectivo primário (a maioria absoluta) e também o secundário, que seria uma maioria relativa, e fracassando ainda o objectivo (criado à última hora por artistas como Adão e Silva) de "ter mais deputados do que a parte da coligação que corresponde ao PSD", Costa ainda achasse que devia ser Primeiro-Ministro.

António Costa prometeu que não iria mandar o governo abaixo se não tivesse uma alternativa garantida à esquerda. Mas já devíamos saber que essas promessas não são para ser cumpridas. Num momento de ira pós declaração do Presidente Cavaco Silva, e numa decisão ululantemente apoiada pelas suas tão fieis (?) hostes, já nos informou que irá rejeitar o plano de governo (independentemente do que lá estiver escrito) e que o governo da coligação PSD/CDS tem os seus dias contados.

Mas a coligação negativa ameaça agora tornar-se numa espécie de Governo de Destruição Nacional. Uma oportunidade de tempo limitado (vamos ignorar desde já o conto de crianças de que seria para durar 4 anos...) para colocar factos no terreno que depois são dificílimos de alterar. O canto da sereia syrizista já clama os amanhãs que cantam com mais salários e reformas, menos horas de trabalho, o fim das privatizações em curso e menos impostos o que significa que, como não existe qualquer impedimento constitucional, e desde que os três líderes da esquerda nacional tenham a coragem de se juntar num governo "a sério" (daqueles em que eles se comprometem a governar mesmo, com Ministros e outras responsabilidades) lá teremos oportunidade de fazer história. Carlos César já nos explicou a matemática deste modelo: se os objectivos não forem cumpridos... mudam-se os objectivos à posteriori. Eu, pessoalmente, acho que evitava emprestar dinheiro a alguém que pensa desta forma...

Vai ser uma aventura cara, que provavelmente levará umas décadas a recuperar e naturalmente que irá rapidamente destruir qualquer equilíbrio financeiro, comercial e produtivo que Portugal conseguiu recuperar depois da combinação explosiva de Sócrates com a Grande Recessão. E será certamente triste ver Portugal a ter que pedinchar mais uma ajuda externa de uma qualquer troika (ups, "instituições credoras") pela quarta vez em quatro décadas. Mas enfim, talvez seja mesmo esse o preço a pagar para que Portugal deixe de vez ter um milhão de pessoas a votar em soviéticos e trotskistas e nos possamos finalmente juntar ao grupo dos países verdadeiramente desenvolvidos.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

1942 - O Brasil e a sua guerra quase desconhecida

É relativamente comum encontrar livros de que não gosto pela sua forma ou pelas suas opiniões, mas não é habitual encontrar um livro com tantos erros históricos. Tantos, que inevitavelmente colocamos em dúvida tudo o que de novo encontramos no livro. 

Escrito por João Barone, entusiasta da FEB (Força Expedicionária Brasileira) e filho de um veterano que lutou na segunda guerra mundial na frente italiana este "1942 - O Brasil e a sua guerra quase desconhecida" poderia ser um documento interessantíssimo que desse ao público um maior conhecimento sobre a experiência brasileira na guerra.

Mesmo não sendo eu brasileiro, tive imensa curiosidade em ler o livro assim que o vi. O Brasil lutou na segunda guerra mundial, mas mesmo para quem já tenha lido dezenas de livros e documentários sobre esta guerra, o nome do país praticamente não é referido. A sua importância foi obviamente pequena e a sua participação limitada e tardia, mas o que fez desta guerra uma guerra mundial foi precisamente o facto da sua dimensão ser tal que mesmo países longe dos principais palcos de batalha - Europa, Norte de África, Pacífico e China - foram seriamente afectados. 

Mas o que encontrei foi, infelizmente, um livro confuso e com graves erros. A sequência cronológica é constantemente atropelada o que permite ao autor usar como argumentos situações fora do seu tempo. Se as descrições dos soldados e pequenas unidades são bastante interessantes, a visão macro da guerra parece excessivamente deturpada e pouco clara. A verdade é que a FEB foi enviada para Itália numa altura em que o desembarque da Normandia já tinha sido feito com sucesso e devidamente consolidado. No leste os exércitos de Hitler e seus aliados já tinha sido amargamente derrotados em Stalingrado e em Kursk e estavam a retirar ou a ser cercadas por uma frente que retrocedia centenas de quilómetros. No atlântico, os submarinos alemães estavam a ser dizimados pela frota americana e o Norte de África estava já totalmente limpo de forças do eixo. Numa frase, a guerra estava ganha quando o Brasil efectivamente pega em armas para lutar contra a Alemanha Nazi. E, numa guerra onde morreram muitos milhões de combatentes e ainda mais civis, o Brasil enviou apenas 25 mil homens para o terreno. Por vezes, Barone perde essa perspectiva e procura energicamente mostrar a importância da frente em que os brasileiros combatiam.

Quanto aos erros e imprecisões, deixo aqui alguns que espero que possam ser devidamente corrigidos em posteriores edições do livro: (p116) a ocupação da Guiana Holandesa pelos Estados Unidos em Novembro de 1941 foi feita com o acordo do governo holandês no exílio. Falar apenas de ocupação leva os leitores a (erradamente) pensarem que foi uma invasão. (p128) referir a hipótese de que o governo americano tivesse conhecimento do iminente ataque a Pearl Harbour (algo que é categoricamente desmentido por todos os historiadores) dizendo apenas que foi "algo nunca comprovado" contribui para alimentar a própria ideia. "Não comprovado" é uns graus diferente de "não existe a mais pequena prova nesse sentido". (p168) obviamente a ELO (Esquadrilha de Ligação e Observação) não executou a sua primeira missão no dia 12 de Novembro de 1945, já que a guerra já tinha acabado à muito por essa altura. (p181) sobre as deserções no FEB, duas em 25 mil são matematicamente menos de um por cento, tal como diz o autor, mas seria mais preciso se dissesse que são menos de 0,01%. É que um por cento de deserções, com a guerra já ganha e os alemães em completa retirada até seria um valor extremamente alto. (p230) Roosevelt não faleceu no início de 1945 como diz Barone mas em 12 de Abril, apenas umas semanas antes do próprio Hitler. (p242) a descrição do levantamento (ou "levante" na forma brasileira) de Varsóvia "que ajudaria a expulsar os nazistas do país e ao mesmo tempo serviria para intimidar a ocupação soviética" está francamente mal explicado. Naquele momento da guerra o objectivo era mesmo a expulsão dos nazis. A tal ajuda que não veio era precisamente dos soviéticos, que atrasaram o seu avanço para dar tempo aos alemães de destruirem totalmente a rebelião. Tirando Churchill que se apercebeu muito cedo das intenções soviéticas, muito poucos foram os que fizeram algo para o evitar. Nota especial para a liderança americana que em momento algum viu nos soviéticos os seus futuros inimigos.

Muitos destes problemas poderiam ter sido resolvidos com uma revisão mais profissional antes do texto ser publicado. Enquanto escritor amador (blogger) compreendo perfeitamente que é normal dar erros ridículos, mas um livro em papel não é uma página da internet que é imediata e facilmente corrigível. Um livro, depois de publicado é um projecto fechado e não pode ser lançado numa versão draft.

Numa nota mais positiva, apreciei muito do que aprendi sobre a participação brasileira, sobre a complicada posição política do governo Vargas (lutando ao lado das grandes democracias quando ele próprio era uma ditadura de inspiração fascista), até da absoluta impreparação das forças brasileira que chegaram à frente ainda sem armas (fez-me lembrar Portugal na Grande Guerra) e o pós-guerra dos pracinhas com o silenciamento das suas experiências. O trabalho que João Barone está a fazer é relevante e é necessário que alguém consiga fazer esta ligação entre os historiadores académicos e um público mais vasto. O seu estilo mais leve é importante, mas terá que se preparar melhor no futuro se pretende avançar novamente para uma obra desta envergadura.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Abu Dhabi, da Pobreza à Riqueza

Um dos livros mais curiosos que li nos últimos tempos. Descrevendo com grande cuidado o progresso de Abu Dhabi na segunda metade do séc. XX, Mohammed Al-Fahim escreve na primeira pessoa revelando a absoluta miséria do seu povo até aos anos 60 e a rápida ascensão do Emirado até se tornar numa das mais ricas cidades do mundo.

Al Fahim não é um escritor ou um historiador, mas é filho de um dos conselheiros do fundador dos Emirados Árabes Unidos, Sheikh Zayed, e conhecido empresário local. O seu conhecimento é acima de tudo um testemunho que deveria ser complementado por muitos outros. Infelizmente para nós, que conhecemos e gostamos de Abu Dhabi, não existem muito mais livros escritos sobre essa época e praticamente nada se sabe sobre o que se terá passado antes do início do séc. XX. A excepção são alguns documentos das potências estrangeiras (em especial o Reino Unido) e relatos dos seus navegadores e viajantes.

Onde hoje existe uma cidade de 2.5 milhões de pessoas, no início dos anos 60 do século passado viviam menos de duas mil. Sem acesso a água potável a população bebia água do mar que era naturalmente (mal) filtrada pela própria areia e recolhida em poços dentro da ilha de Abu Dhabi. Durante os meses de maior calor, a população aumentava consideravelmente para se dedicar ao que era a única actividade económica digna de registo: pérolas. Este árduo trabalho consistia em passar 10 a 12 horas por dia a mergulhar para apanhar ostras no fundo do mar para recuperar as suas pérolas durante meses a fio. Os barcos eram pequenos e inseguros e mantinham-se no mar durante toda a temporada. Uma pequena indústria de barcos de transporte de víveres levava os bens mais essenciais até às frotas. Na ilha não existiam quaisquer edifícios, apenas as cabanas de "barasti" (folha de palma) onde a população vivia, sem acesso a electricidade, água corrente, esgotos ou qualquer outra das comodidades já comuns em tantos lugares do mundo.

Finalizada a época das pérolas, grande parte da população mudava-se para Al Ain, um oásis no interior do Emirado (hoje a segunda maior cidade) onde existia água fresca e alguma agricultura e pecuária. A viagem (que hoje fazemos em pouco mais de uma hora) durava então cerca de uma semana e cobrava a vida de muitos dos mais velhos e mais novos.

O livro é verdadeiramente fascinante e obrigou-me a olhar para os Emiratis de uma forma renovada. Olho para os meus colegas e imagino o que os seus pais e avós sofreram e a velocidade a que tiveram que se adaptar quando a enxurrada de petro-dólares chegou. Como ponto fraco deste livro, apenas o facto de este ser apenas um testemunho e um ponto de vista. Seria interessante ter outras vozes a contarem as suas experiências dessa época para ajudar a completar a história desses tempos.

Se não era já óbvio, aconselho "From Rags to Riches, A Story of Abu Dhabi" vivamente a todos os que residem e trabalham em Abu Dhabi e Dubai, assim como aos que mostram interesse pela história do Golfo Pérsico e destes pobres povos nómadas que no tempo de vida de uma pessoa se tornaram na mais rica cidade do globo.

domingo, 21 de junho de 2015

António Costa, Sócrates e Tsipras

A generalidade dos comentadores políticos em Portugal acordaram sobressaltados com a última sondagem da Universidade Católica que dá a coligação PSD/PP ligeiramente à frente do PS de António Costa. 

Depois de 4 anos terríveis, de aperto de cinto como ninguém tinha memória, com o país constantemente acossado pelos mercados de capitais, as visitas da troika e agências de rating, era de esperar que este governo tivesse de ser substituido por sangue novo, ou pelo menos com caras diferentes. Se isto já era elementar quando António José Seguro era secretário-geral do PS, ainda mais seria depois de António Costa lhe conquistar a liderança. Costa tinha tudo o que faltava a Seguro: carisma, experiência governativa, boa imprensa, linhas de comunicação à esquerda e uma retumbante vitória eleitoral recente.

Existiam apenas três variáveis que podiam colocar em causa uma vitória fácil do PS de António Costa, mas apenas uma tempestada perfeita podia sincronizar todas elas. Para mal do PS, as péssimas decisões de António Costa e os acasos do destino fizeram com que as três se estejam a formar no horizonte.

Crescimento Económico

A grande esperança da coligação governamental era a de que por esta altura os indicadores económicos já dessem bons sinais de recuperação. O pior já parece ter passado, a economia está novamente a crescer, o fenómeno da emigração aliviou o desemprego e a necessidade de subsídios e aumentou as remessas, e os juros baixaram para níveis históricos. Mesmo com a violenta queda do Banco Espírito Santo, a situação vai melhorando. Os próximos meses dirão se teremos uma recaída ou se a recuperação se vai começar a sentir mais no bolso dos portugueses. Tudo isto seria uma incógnita em termos eleitorais (Churchill perdeu as eleições depois de ganhar a guerra...), mas quando é o próprio secretário-geral do PS a defendê-lo na famosa reunião com a comunidade chinesa em Portugal, torna-se uma arma política. Na retórica do PSD/PP - e que acaba por ser confirmada por Costa - o país que o PS deixou em queda-livre está agora melhor e cada vez melhor.

Syriza

Já há muitos anos que era óbvio para quem quisesse ver que Alexis Tsipras e o seu partido radical de esquerda eram um perigo para a Grécia e para a Europa[1]. Quando chegaram ao poder, Tsipras, Varoufakis e seus companheiros revolucionários mudaram o rumo e a retórica, e com estes a tímida recuperação que se começava a fazer sentir no país. Tudo isto poderia estar relativamente estanque - em termos político-partidários portugueses - se António Costa não tivesse cometido o erro crasso de se associar à vitória do Syriza (numa traição ao PASOK que deixou muitos boquiabertos) quando afirmou que "a vitória do Syriza é um sinal de mudança que dá força para seguir a mesma linha". Claro que entretanto já se tentou afastar das suas próprias declarações, mas o facto é que os acontecimentos na Grécia (e podemos estar a dias ou semanas de um desastre total) estão agora ligados ao PS. E a cada dia que passa, a cada mil milhões de Euros que desaparecem do sistema financeiro grego, é natural que os portugueses se perguntem se é mesmo Costa que pretendem para chefiar Portugal nos próximos 4 anos.

Sócrates

A detenção do ex-primeiro-ministro é um acontecimento com enormes repercursões políticas. Não faço a mais pequena ideia por que motivo alguém acredita que consegue separar este evento das eleições legislativas, do Partido Socialista e de António Costa. Sócrates não foi preso por pedofilia ou por violência doméstica, mas por suspeitas sérias de ter recebido milhões por actos ilegais e imorais feitos enquanto primeiro-ministro. O crime de que estará a ser acusado não é uma questão pessoal. A alegada corrupção de um primeiro-ministro obviamente que mancha quem com ele trabalhou. Afinal de contas, será que José Sócrates decidia sozinho para quem iam as obras? Não existiam conselhos de ministros? Onde estavam as equipas de trabalho e acompanhamento destas propostas? Quem assinava as adjudicações? Pondo a questão de forma muito simples: se António Costa era o número dois do PS no momento em Sócrates estaria a cometer esses crimes de corrupção, seria ele parte envolvida ou estaria incompetentemente abstraído de tudo o que se passava à sua volta? A confiança de Costa em Sócrates é notória, já que assim que chegou à liderança do PS, iniciou a redenção de José Sócrates (processo em que Ferro Rodrigues também está fortemente envolvido). Finalmente, enquanto antigo ministro da Justiça, não tem Costa nada a dizer quanto às fugas de informação, a demora nos processos, as prisões preventivas eternas?

A generalidade dos comentadores mostra algumas reticências em falar do óbvio por isso deixem-me dizê-lo sem meias palavras: António Costa está profundamente ligado ao destino de Alexis Tsipras e José Sócrates. E os próximos meses poderão trazer o fim do Euro na Grécia e o início do processo de acusação a José Sócrates. Quanto ao anterior líder, António José Seguro, é curioso que nunca mostrou grande interesse no Syriza e é uma das poucas pessoas do Partido Socialista com um currículo anti-Sócrates. Mas até isso não deve servir de alento a nenhum socialista já que Costa não pretende ter Seguro no seu executivo.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Escolha de Inimigos - América confronta o Médio Oriente

Trago-vos hoje mais um livro sobre o Médio Oriente. E mais uma vez de um historiador britânico, embora este seja uma estreia neste blogue: Sir Lawrence Freedman, professor de Estudos de Guerra no King's College London e assessor de Tony Blair. "A Choice of Enemies, America confronts the Middle East" olha para os últimos 50 anos de diplomacia americana no Médio Oriente, do ponto de vista ocidental, i.e. dos seus interesses, medos e ambições. O livre é extremamente frio e em alguns sentidos verdadeiramente amoral, o que é sempre uma forma interessante de olhar para a história. E extremamente difícil de fazer quando nos referimos à história recente.

Se muitos dos livros que aqui trago têm o objectivo explícito de dar a conhecer ao meu público ocidental o que é o Médio Oriente, o Islão e a história deste lugar onde passei praticamente toda a última década, neste caso o livro ajuda a compreender não o Médio Oriente mas as acções dos Estados Unidos. Ao analisar com grande detalhe os processos de decisão norte americanos, o livro consegue também explicar as diferentes personalidades que lideraram a América e os impactos que cada um teve neste mundo. Desde a moralidade e religiosidade de Jimmy Carter à praticalidade de Ronald Reagan; do fim da história de George H. W. Bush até à indiferença de Bill Clinton. E, claro, o atoleiro em que todo o Médio Oriente entrou com a invasão de George W. Bush e Tony Blair (o livro foi publicado em 2008 por isso já não inclui a presidência de Barack Obama).

Se há uma crítica que lhe faço é relativa aos últimos capítulos do livro, onde Freedman parece adivinhar um futuro para o Médio Oriente que está longe de se ter realizado. Onde ele vê um definhamento do movimento islamita, um golpe de  morte na AQAP (Al Qaeda Arabian Peninsula) e na Al Qaeda Iraque (hoje Estado Islâmico / ISIS / ISIL) a realidade mostrou-nos que o seu poder só tinha por onde crescer. Também não viu a necessidade e a vontade de liberdade e democracia no Médio Oriente, que acabou dois anos depois no fim dos regimes da Tunísia, Egipto, Iémen e Líbia, para além de sérias convulsões e guerras civis em vários outros países da região, no que ficou conhecido como a "Primavera Árabe". 

Mas talvez a melhor parte do livro está na descrição das diferentes formas como as administrações americanas lidaram com a questão israelo-palestiniana. Como tentaram, sem grande sucesso, as soluções passo-a-passo (ou seja, tentanto que ambos os lados fossem ganhando a confiança um do outro através de pequenas melhorias na situação geral em termos de segurança, liberdade e representatividade) para as comprehensive solutions que procuram negociar todos os detalhes do problema, permitindo que cada um dos lados pudesse sacrificar áreas importantes por outras vitórias. No final, nunca nenhum resultou. Por muita vontade que alguns dos presidentes americanos tivessem, por muito tempo e dinheiro que investissem, quer do lado de Israel quer da Palestina, existiram sempre demasiados fundamentalistas decididos a destruir qualquer hipótese de paz. Enquanto alguns líderes lutavam pela paz, outros estavam decididos a destruí-la. E ao fim de todas estas décadas, a situação não está melhor e é apenas uma questão de tempo até vermos mais uma intifada, mais uma guerra curta de tipo corta-relva ou mais uma escalada regional generalizada.

Em qualquer caso, este é um livro verdadeiramente sério, que não exige qualquer conhecimento aprofundado prévio e que deve agradar quer a especialistas quer aos que estejam a ler sobre o assunto pela primeira vez. Mais um livro que aconselho, não tanto para compreendermos a história recente do Médio Oriente, mas mais para compreendermos o seu futuro próximo.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Invencível - Unbroken 2014

Este filme de Angelina Jolie retrata uma das muitas histórias de heroísmo e bravura que se passaram durante a guerra de 39-45. Baseado em factos verídicos, Unbroken acompanha a vida de Louis Zamperini, filho de italianos imigrantes nos Estados Unidos que, de uma infância de alcoolismo e brigas chega aos Jogos Olímpicos de Munique onde a sua última volta na prova dos 5000 metros impressionou Hitler de tal forma que este insistiu em o conhecer e cumprimentar (embora esse pormenor não seja incluido no filme). 

Durante a guerra, Zamperini fez parte da tripulação dos bombardeiros B-24 Liberator onde acaba por sofrer um acidente e ficar à deriva no mar durante semanas até se tornar prisioneiro de guerra do Japão. 

O filme é impressionante, bem filmado, com bons actores e com uma história de coragem e perseverança que marcam positivamente uma guerra tão cheia de sofrimento e vingança. Jolie, alguém que já demonstrou tantas vezes a sua energia e vontade de estar do lado certo da História, utiliza aqui a sua arte - e não só a sua imagem e fama - para mostrar mais uma história que merecia certamente ser conhecida pelo público. 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Que esperança para o Médio Oriente?

Iraque, Síria, Líbia e Iémen em guerra civil. Arábia Saudita e os seus aliados do GCC (Gulf Cooperation Council) envolvidos em cada uma destas guerras. Irão enredado com os Houthis no Iémen, com os pés no Iraque, ligado ao Hizbullah libanês (que por sua vez opera com Assad na Síria) e cada vez mais uma peça fundamental no geograficamente limitado governo shiita de Bagdad. O Estado Islâmico controla milhões de civis e territórios extensos e segue parcialmente o estilo franchising da Al Qaeda, com inúmeros grupos e grupelhos a aliarem-se à causa, desde hackers europeus, ex-Al Qaedas no Iémen, Boko Harams na Nigéria e tribos líbias e iraquianas. Em nenhum destes sítios a paz, a democracia ou os direitos humanos fizeram progressos significativos. Pelo contrário, quando algo se alterou, foi para pior.

Em Israel e na Palestina, mantém-se o status quo, com os três actores principais (governo de Israel, Fatah e Hamas) a degradarem-se e digladiarem-se numa guerra semi-fria sem fim à vista. Nada a esperar senão a continuação da divisão palestiniana e as cíclicas guerras sobre Gaza, invasões da Cisjordânia e rockets atirados sobre os civis israelitas.

No Egipto, uma junta militar ilegalizou a Irmandade Muçulmana, prendeu o Presidente da República e elegeu um novo presidente com metade da população sem representação política. As detenções são às dezenas de milhares e as penas de morte aos milhares. Com grande pena minha, a única questão que coloco é quando começará a guerra civil no Egipto. Mesmo com os biliões de dólares que lá estão a ser injectados pelos Estados Unidos, pela Europa e pelas monarquias do Golfo, não tenho grande esperança. Assim que os ventos da economia mudarem, descobriremos que os milhões que votaram em Morsi ainda lá estarão, desta vez provavelmente armados e desiludidos com qualquer tipo de processo democrático.


Rei Salman bin Abdulaziz Al Saud
Na Arábia Saudita, o recém chegado Rei Salman deserdou o príncipe herdeiro e fez descer uma geração no cargo, sendo o novo príncipe Muhammad bin Nayef - seu sobrinho, e o terceiro em linha o seu próprio filho, Muhammad bin Salman. O histórico príncipe Saud al Faisal, o poderoso ministro dos negócios estrangeiros durante 40 anos, é também uma alteração radical que não pode ser desprezada. O seu nome - e o seu poder - é uma constante em todos estes livros que vamos falando neste espaço. Estas mudanças recentes ainda não estabilizaram totalmente e esperamos para ver como o país e a numerosa família real lida com a situação. Há muito pouco de bom a dizer sobre a Arábia Saudita (em especial no que toca a direitos humanos no seu próprio país), mas se existe um factor que vale a pena mencionar é a sua estabilidade. Questionam-se muitos se, envolvidos em guerras no Iémen, Síria, Iraque e Líbia - todas com poucas esperança de sucesso - e uma passagem de testemunho atabalhoada onde muitos príncipes (literalmente filhos de antigos reis) acabaram de ser atirados para segundo plano, não terá essa estabilidade chegado ao fim. Para compreendermos melhor esta última frase, devo relembrar que os últimos seis reis da Arábia Saudita eram irmãos, todos filhos do fundador do país, Abdulaziz Ibn Saud.

Alguns países têm-se conseguido manter mais ou menos fora do pior da confusão, como a Jordânia, o Líbano e a Tunísia. No entanto, os dois primeiros recebem milhões de refugiados e estão a rebentar pelas costuras sem capacidade para tamanha imigração. O Líbano, já de si uma manta de retalhos de religiões e etnias com o mais peculiar de todos os sistemas supostamente democráticos do mundo, conta agora com 25% da população vinda da Síria. Para um país que nunca conseguiu recuperar totalmente da Naqba palestiniana em 1948 e dos refugiados de 1967, não é difícil imaginar que o pior ainda está para vir. A Jordânia mantém-se na sua inesperada paz, com o apoio ocidental e paz com Israel, mas cuja liderança relativamente iluminada não deve esconder o facto de que continua a estar muito longe de ser um país livre. Mas sobreviveu ao pior e ainda não perdi a esperança neste país sem grande passado mas ao qual o futuro ainda poderá reservar um lugar interessante.


Tataouine, Tunisia
Por fim, a Tunísia, o único local realmente merecedor de verdadeira esperança para o Médio Oriente (embora tecnicamente já estejam bem longe do Médio Oriente propriamente dito). O processo democrático tem-se aprofundado, com os partidos a aceitarem a alternância e sem a habitual utilização das forças de sergurança e serviços secretos para liquidarem a oposição. O Estado Islâmico já mostrou interesse na região, mas a situação está longe de perdida. Enquanto europeu, gostava muito de ver a União Europeia a financiar tanto quanto possível o desenvolvimento do país, sempre com os direitos humanos e políticos como moeda de troca. A democracia não sobrevive se não existir progresso, ordem e liberdade (só faltou esta última na bandeira verde e amarela).

Temo que grande parte do Médio Oriente piorará muito nos próximos anos, antes de começar a melhorar. Talvez um sucesso democrático na Tunísia possa iluminar o caminho para os restantes, mais uma vez. Durante o último ano, pouco temos ouvido da Tunísia. Pas de nouvelle, bonnes nouvelles? 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Diamantes de Sangue

Angola não costuma ser um tema habitual neste blogue. Embora seja um país que muito me interesse e que, como todos os portugueses, esteja bem próximo não é um assunto onde eu sinta que posso acrescentar muito. Mas felizmente há outros cujo conhecimento do terreno, longo historial na luta pelos direitos humanos e a devida preparação prática e teórica o podem fazer muito melhor. E no que toca a Angola, Rafael Marques é o nome inevitável. 

Presentemente, este corajoso jornalista encontra-se a lutar pela liberdade nos tribunais de Angola depois de os generais visados neste livro "Diamantes de Sangue" o terem processado por difamação, entre outras acusações que ainda não estão muito claras.

O livro foi entretanto gentilmente oferecido pela sua editora em Portugal, a Tintas da China, e disponível para download no blogue do autor[1]

É uma leitura complicada. Os repetitivos testemunhos de homicídio, tortura, escravatura, rapto, roubo e todo o tipo de abusos cometidos pelas Forças Armadas Angolanas e pela empresa de segurança privada Teleservice, são de uma escala inimaginável nos dias de hoje. Muito sinceramente, as descrições pareciam retiradas de algo escrito no século XVIII, quando o mundo ainda considerava que a escravidão era algo natural. Não foi surpresa para mim saber que os angolanos sofrem às mãos de um dos mais corruptos governos século XXI. Todos os amigos e família que vivem ou viveram em Angola nos últimos anos trazem testemunhos mais ou menos semelhantes, mas mesmo isso não me preparou para as centenas de vítimas de abusos de um nível bárbaro e sanguinário.

Em alguns momentos do livro pensei que havia algo que faltava no livro. Não existia uma relação directa, um testemunho real de que os generais - que são donos e representantes públicos dessas empresas e organismos que controlam a indústria diamantífera - sabiam do que lá se estava a passar. Mas essas dúvidas dissipam-se quando vemos a reacção destes militares e do regime de José Eduardo dos Santos a este mesmo livro. Em vez de agirem de forma inequívoca para acabarem com o que é nada menos do que uma vergonha nacional e um atentado aos direitos humanos de proporções dantescas, preferiram atacar o escritor. E isso, diz muito.

sábado, 28 de março de 2015

Iémen, a caminho do abismo

Muitos recordarão com saudades os tempos em que o Iémen era apenas o mais pobre dos países da península arábica. Quando o medo constante da Al Qaeda, os eventuais ataques de drones americanos, a violência dos serviços de segurança e a falta de liberdade política aterrorizavam o país. Tirando as ocasionais referencias em algumas publicações especializadas no Médio Oriente e o comovente e assustador livro "Divorciada aos 10 anos" de Nojoud Ali e Delphine Minoui, este país esteve nas últimas décadas praticamente esquecido do mundo. Para todos os efeitos, o Iémen esteve sempre mais longe das esplendorosas monarquias do Golfo do que New York ou Tokyo.

Mesmo nos inúmeros livros sobre o Médio Oriente e o seu turbulento século XX, este país poucas menções recebe para além de ter sido o campo de batalha no jogo de forças entre a Arábia Saudita e o Egipto de Nasser. Guerra que dividiu o Iémen nos anos 60 e que foi para o mediático presidente egípcio o que o Vietname foi para os Estados Unidos.

Durante a Primavera Árabe, vimos a população Iemenita a reagir de forma semelhante a tantos outras por toda a região. Nas ruas exigiram democracia e liberdade e um futuro sem ditadores sanguinários. Mas como em muitos outros países, da Primavera saltou-se rapidamente para o Outono e, antes que alguém se apercebesse estávamos no pico do Inverno.

Até há pouco tempo, quem imaginaria os Houthis a tomarem a capital Sanaa? A verdade é que ninguém, mesmo estando estes associados ao Irão e já tendo iniciado várias revoluções na última década. Sabíamos que a AQAP (Al Qaeda da Península Arábica) esteve sempre activa em várias partes do Iémen, onde colocava pressão numa desconfortável Arábia Saudita e nos Estados Unidos que controlavam a zona com bombardeamentos de drones. Também era conhecido que a queda do ditador Ali Abdullah Saleh tinha destruído o fraco equilíbrio do país. Mesmo assim, é sabido que os Houthis não têm capacidade (nem representação na população) para conseguir manter o país inteiro debaixo do seu braço por isso teria que existir algum tipo de acordo de partilha de poder, mas os acontecimentos do último fim de semana poderão ter alterado tudo.

No dia 20 de Março, ataques bombistas em duas mesquitas Shiitas (ou seja, ligadas aos Houthi) mataram 142 pessoas e feriram mais 351. O terrível ataque, que inicialmente se pensou ser um acto da AQAP foi assumido pelo Estado Islâmico (ISIS/ISIL), uma surpresa já que até então o EI não tinha mostrado os seus tentáculos nesta região. O modus operandi apontaria para AQAP, mas a própria Al Qaeda se distanciou do ataque.

A entrada deste novo actor e a ascenção do governo alternativo do Presidente Hadi na cidade portuária de Aden (que chegou a estar preso pelos Houthis na capital Sanaa, mas de onde conseguiu fugir entretanto), levaram a um novo avanço dos Houthi em direcção a Aden.

Um par de notícias chamou-me particularmente à atenção nos dias que se seguiram. Primeiro de que o chefe de estado Abedrabbo Mansour Hadi estaria novamente em fuga e já não se encontraria em Aden. Dadas as circunstâncias, uma decisão compreensivel já que provavelmente não conseguiria escapar-se novamente caso caisse nas mãos dos novos senhores do Iémen. A segunda, que me pareceu bastante mais inesperada foi a de que Aden estava a ser bombardeada pelos Houthis. Especificamente, o BBC World Service referia-se a jactos lançando bombas na zona do palácio onde o governo alternativo teria sede. 

Mas quantas vezes vimos uma força rebelde com uma força aérea? Mesmo o Estado Islâmico, que conseguiu conquistar inúmeros aeródromos e aeroportos militares, capturou aviões e jactos mas nunca conseguiu fazer operações aéreas. Afinal de contas, é preciso muito mais do que aviões. São necessários pilotos, técnicos, controladores aéroes e engenheiros assim como fuel, óleos e todo o tipo de partes específicas para as aeronaves. Claramente, não é a mesma coisa que capturar uns Humvees ou umas AK-47. 

A resposta acabou por aparecer em outros serviços noticiosos, onde era dito que forças leais ao antigo ditador Saleh estariam a lutar ao lado dos Houthi. Não é fácil sabermos quem exactamente estará incluido mas podemos estar a falar de muito mais do que um pequeno contingente da força aérea.

Por fim, a Arábia Saudita, com o apoio de outros 9 países árabes que incluem algumas potências regionais (como os Emirados, Qatar, Egipto e Paquistão) iniciaram o que chamam de bombardeamentos cirúrgicos (onde é que eu já ouvi isto?) dentro do Iémen, numa coligação apoiada politicamente pelos Estados Unidos e onde a hipótese de uma invasão terrestre está claramente na mesa. A liderança saudita já informou que estaria pronta para incluir uma força de 150.000 militares e mais de 100 aviões de combate na operação.

A operação é resultado de um pedido explícito de ajuda do Presidente eleito Hadi, em Aden, o que lhe dá alguma validade moral, mas o facto é que quando o país for destruído até voltar à idade da pedra já ninguém se lembrará disso. Ou não foi a invasão soviética do Afeganistão também o resultado de um pedido de ajuda?

segunda-feira, 23 de março de 2015

O povo é soberano: Apartheid será

Este mês, os israelitas foram às urnas. Quando o mundo achava que tinha chegado o fim do reinado de Benjamin Netanyahu, a vitória clara e inesperada deu uma mensagem cristalina ao mundo: Israel escolheu o Apartheid. 

E não devemos ter dúvidas em relação a isso. Nos últimos dias de campanha, quando  tudo apontava para um empate técnico, Netanyahu abriu o jogo e lançou as suas cartas mais poderosas: (1) colocaria em causa a relação com a presidência americana se fosse necessário para conseguir que não existisse qualquer tratado de paz com o Irão; (2) procurou assustar a população judaica dizendo que os árabes estavam a chegar em autocarros para votar em massa, o que demonstra um absoluto racismo em relação aos israelitas não judeus e, finalmente, (3) que se ganhasse garantiria que não permitiria a existência de um estado palestiniano ou o desmantelamento dos colonatos judaicos na Cisjordânia.

Com muita razão, alguns críticos disseram que este apelo ao voto era o equivalente a Mitt Romney ter dito às televisões para os brancos irem votar porque os pretos estavam a votar aos milhões. Não seria isto racismo? Obviamente que sim. Mas aparentemente está em voga em Israel.

Ao garantir que não existirá qualquer estado Palestiniano, ele está a negar o que se tinha comprometido com os Estados Unidos e a comprovar o que muitos - incluindo eu próprio - não tinham dúvidas. De que ele nunca esteve comprometido com uma solução de dois estados (ou sequer de um estado multi-nacional). Bibi parece ter como desejo último uma limpeza étnica de milhões de muçulmanos e cristãos para lá do rio Jordão, um pesadelo que nos cabe a todos impedir.

Sem uma solução de dois estados, sem o fim da ocupação e com um mandato claro por parte dos israelitas, a decisão está tomada. Israel mostra ao mundo aquilo que quem conhece o terreno já sabia ser verdade há muito tempo: Apartheid.

Uma tristeza para os milhões de israelitas e palestinianos que realmente desejam paz, segurança e progresso e vêm o seu futuro constantemente adiado pelos (aparentemente cada vez mais) fanáticos dos dois lados da muralha...

quarta-feira, 4 de março de 2015

Os cães amestrados de Netanyahu

Depois de muitos artigos a criticar as posições de Benjamin Netanyahu, chegou o dia em que tenha o felicitar. A ocasião foi a sua estrondosa actuação no palco da democracia norte-americana na tarde de ontem. Se na sua visita de 2011, as 28 ovações de pé dos congressistas e senadores ao seu discurso de 47 minutos já me deixaram de boca aberta[1], imaginem a minha reacção quando ontem vi o seu recorde de 1 ovação a cada 100 segundos descer para uns inimagináveis 90 segundos[2], algo que provavelmente nenhum líder estrangeiro alguma vez terá conseguido. Uma imagem realmente digna de ser vista, com a nata dos políticos americanos a comportarem-se ao mais alto nível de uma competição canina ou do partido comunista da Coreia do Norte. 

Que pena ele não aproveitar todo esse capital político para fazer alguma coisa útil pelo seu país e pelo mundo em vez de tentar sabotar tratados de paz...

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Petróleo, Medo e Armas

Explorar o interior de uma feira internacional de armamento é uma experiência que desperta alguma curiosidade para um civil, como é o meu caso. Quando imagino guerras o que me ocorre é morte e destruição; o desaparecimento de regimes, sociedades e economias que - seguindo a lei universal - são transformados em algo de diferente, tipicamente ódio e ressentimento ou, raríssimas vezes, um ambiente melhor do que o que o precedeu. Claro que nada disto é mostrado numa feira deste tipo, onde as palavras de ordem são sempre a segurança, a manobrabilidade, capacidade de carga e outras características que um qualquer arquitecto com gola alta procuraria no seu novo Volvo.

O lado tecnológico da guerra é fascinante, embora sempre ligeiramente desfazado da realidade no terreno, como disse James A. Field na sua famosa frase "é proverbial que os generais sempre se preparam para a guerra anterior". Mas não será certamente mero conservadorismo. Os investimentos bélicos são enormes, demoram anos a serem transformados em armas utilizáveis e ainda mais a tornarem-se lucrativos. Nesta feira de Abu Dhabi (IDEX 2015), notava-se a enorme preponderância de drones, fossem eles de ar, terra ou mar. Sem dúvida o resultado de uma década e meia de guerra assimétrica no Iraque, Afeganistão e agora também da Síria. Também notei as enormes opções para APC (armored personnel carriers), certamente ligado ao grande número de baixas sofridas pelos países ocidentais nos Humvees e outros veículos leves semelhantes. Os grandes tanques - como o americano M1 Abrams - gastam tanto combustível que é inevitável que atrás desta fortaleza móvel e inexpugnável tenham que vir uma fila de apavorados camiões com gasolina e munições E é aí que estão um grande número de vítimas americanas no Iraque entre 2003 e 2011 - devidamente mascaradas nas estatísticas já que são considerados contractors e não militares[1].


Até há pouco tempo acreditávamos que os países ocidentais tinham uma hiper-sensibilidade às suas baixas, coisa que regimes menos democráticos não sofriam porque controlam mais a opinião pública e em especial a opinião publicada. Mas os tempos mudaram e mesmo países sem direito de voto não conseguem evitar totalmente os blogues, redes sociais e as centenas de televisões internacionais por cabo. Como seria de esperar, também os adversários usam cada vez mais as tecnologias ao seu dispor espalhando a sua mensagem de forma progressivamente mais eficiente. Os recentes casos do piloto jordano, Muadh Al Kasasbeh; do massacre dos soldados Shiitas do exército Iraquiano capturados pelo ISIS ou dos Cristãos Egípcios (Coptas) na Líbia mostram uma face terrível do Estado Islâmico, mas também a recém-descoberta sensibilidade às baixas por parte dos governos árabes. Não é de estranhar por isso que hoje estejam todos aqui em Abu Dhabi de carteira aberta a comprar aviões telecomandados, entre outros.

Mas este shopping spree começou bastante antes do aparecimento do Estado Islâmico. A constante ameaça (real ou imaginária) entre os três blocos do Médio Oriente (Árabes, Persas e Judeus) e o medo de levantamentos populares como a Primavera Árabe fez com que uma parte considerável das receitas do petróleo seja rapidamente gasta em armamento militar, como pode ser visto pelo orçamento militar da Arábia Saudita[2], que ultrapassou em 2014 países como o Reino Unido, a França ou a Alemanha e tem hoje o maior orçamento mundial em percentagem do PIB. Para um país que não entrou numa guerra a sério desde a sua formação em 1932, parece complicado de explicar. E não é um fenómeno novo, podemos encontrá-lo no Egipto de Nasser, no Iraque de Saddam, no Irão de Reza Pahlavi, etc. 


A verdade é que este constante clima de medo e desconfiança (entre Árabes, Persas e Judeus; entre Sunitas e Shiitas; entre seculares e religiosos) é extremamente lucrativo para muita gente. Em especial para os grandes exportadores de armas dos EUA, Europa e Rússia. E é esse o verdadeiro motivo para tantos estarem contra qualquer normalização das relações entre o Irão e o Ocidente. Só isso explica porque no meio das negociações o Congresso Americano - empurrado simultaneamente pelos lóbis de Israel, da Arábia Saudita e do complexo Industrial-Militar - tentou passar novas sanções sobre o Irão. Felizmente Obama esteve (para variar?) à altura e ameaçou clara e publicamente com o veto de tais sanções. Nas suas palavras na CNN, entrevistado por Fareed Zacharia, enquanto o Irão cumprisse o seu lado do acordo não permitiria que ninguém sabotasse as negociações. A paz pode ser do agrado de milhões e milhões de civis, mas não é conveniente a toda a gente.

Esperemos que daqui a uns anos estas feiras de armamento não tenham tanto interesse... 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Podemos ter paz na Terra Santa

O primeiro livro que li especificamente sobre a questão Israelo-Palestiniana terá sido provavelmente o "Palestina: Paz não Apartheid" de Jimmy Carter. Desde então tenho seguido com grande interesse os movimentos deste antigo Presidente dos Estados Unidos pelo Médio Oriente nas suas incansáveis viagens pela região, procurando o entendimento entre os seus muitos e muito complexos actores. Se Carter poderá não ser um dos presidentes que maior marca deixou na história americana, o seu trabalho posterior enquanto activista dos direitos humanos reservou-lhe um lugar brilhante na história.

Também não pude deixar de notar nos anos que passei em Ramallah a regularidade com que Carter visitava o país. As suas viagens eram seguidas com enorme interesse quer pela população quer pelos media locais mas, ao contrário de outros dignatários internacionais, não causava demaisado aparato. A vinda de George Bush, por exemplo, levou à declaração de feriado municipal para que as ruas pudessem estar totalmente vazias à passagem da comitiva. Também não tinha pressa em ir-se embora. Lembro-me bem de uma comitiva de deputados portugueses que visitou Ramallah em Junho onde metade destes recusaram-se a entrar na zona controlada pela Autoridade Palestiniana, tendo por isso ficado em Jerusalém. Também não perderam grande coisa porque nessa noite vimos Portugal a ser derrotado pela Espanha e atirado para fora da copa. De qualquer forma, imediatamente a seguir ao jogo seguiram o seu caminho para o outro lado da muralha. Jimmy Carter por seu lado ficava sempre vários dias, corria de reunião em reunião falando com tudo e todos. Não só as pessoas que trabalham no Carter Center em Ramallah, mas também elementos do governo, oposição, grupos civis, etc. 

"Podemos ter paz na Terra Santa, Um plano que vai funcionar" de Jimmy Carter mostra-nos essa faceta incansável do velho estadista. Será provavelmente tambem uma das poucas figuras mundiais que compreende a importância - e actua nesse sentido - de incluir grupos como o Hamas e o Hizbullah no processo de paz. Esses grupos representam demasiadas pessoas e demasiado poder no terreno para poderem ser ignorados e a sua agenda é muito mais prática do que outros grupos terroristas. Se foi possivel que a violência do IRA, na Irlanda do Norte, terminasse, porque motivo devemos desistir de tentar que outros grupos em tudo semelhantes entrem também no processo político regular e democrático?

Carter mostra-nos quais são as limitações de ambos os lados, quais os pontos comuns e que passos podem e devem ser seguidos até termos uma solução de dois estados. Alerta também para o risco de esta solução deixar de ser exequível, se a situação continuar a piorar, nomeadamente no que toca aos colonatos judaicos na Cisjordânia.

Em primeiro lugar, a necessidade de um governo único na Palestina tecnocrático que seja apoiado quer pelo Hamas quer pela Fatah até às eleições. Já foram feitas várias tentativas e, embora difícil, deverá ser um objectivo possível. Que o Hamas aceite todos os compromissos internacionais, tais como os acordos de Oslo e a resolução 242 das Nações Unidas, incluindo a existência de Israel. Até este momento o Hamas já aceitou que o Presidente Abbas tem autoridade para negociar com Israel e aceita qualquer acordo desde que este seja referendado junto dos palestinianos. Que a ocupação da Cisjordânia seja terminada com trocas de terras mutuamente acordadas em zonas de maior concentração de colonatos. Que exista aceitação mútua e normalização das relações de todos os países árabes com Israel, no seguimento da proposta Saudita de 2002 (que foi também aprovada pela Liga Árabe). Que a Palestina seja criada como um estado desmilitarizado, com forças da ONU aceites por Israel e Palestina a controlar as suas fronteiras.

Embora com enormes desafios, a solução proposta por Carter faz sentido e é um dos poucos caminhos ainda abertos para uma resolução pacífica do problema. Mas, como o próprio diz, o tempo pode estar-se a esgotar e os facts on the ground tornarem-se simplesmente demasiado complexos para se conseguir desenhar dois estados lado a lado. Nessa altura, só existirão duas hipóteses, ambas terríveis: status quo ou apartheid.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Terroristas e Filhos da P...

Já imaginaram se um país fizesse uma lei a criminalizar os filhos da p..., cabrões e morcões? À primeira vista talvez até pudesse apelar a um certo sentido de justiça. Afinal de contas todos sofremos à conta desses que constantemente nos ultrapassam no trânsito pela faixa de segurança, que usam o nosso dinheiro de forma indevida, que nos roubam nos trocos, que vivem de explorar o trabalho dos outros, etc. No entanto, é claro que tentar legislar o que as pessoas "são" não funciona dada a sua subjectividade, apenas o que "fazem". A legislação foca-se por isso, na sua generalidade, nos comportamentos das pessoas.

Com o enorme número de leis, decretos, procedimentos e regras em todo o mundo dedicados ao terrorismo, seria de esperar que o conceito de terrorismo (ou de "acções terroristas", ou de "terrorista") fosse claramente definido. Mas a verdade é que não é. Nem especialistas da matéria (como os centros de investigação de Leiden, The Hague, ou do programa START da Maryland University), nem os media, nem os governos, nem o público têm uma definição clara e aceite. De alguma forma, toda essa documentação tem pés de barro, porque constrói sobre uma definição inexistente ou altamente imprecisa. 

No entanto o termo terrorismo é utilizado de forma absoluta e acrítica por tudo e todos, inclusivé por muitos que são considerados por outros de terroristas. O Hamas é uma organização terrorista, quando visto de Israel. Israel é acusado de ser um estado terrorista pelo Hamas. Menachem Begin, líder do grupo terrorista judaico Irgun e mandante do atentado à bomba ao Hotel King David, foi mais tarde Primeiro-Ministro de Israel e recebeu o prémio Nobel da Paz, pelo processo de paz com o Egipto. Yaser Arafat, o super-terrorista cuja Organização para a Libertação da Palestina (OLP) cometeu centenas de ataques terroristas de todos os tipos, incluindo pirataria aérea, atentados bombistas, bombistas suicidas e raptos, acabou por se tornar Presidente eleito da Autoridade Palestiniana e receber também o seu próprio Nobel da Paz. E como estes poderia falar de outros "terroristas", como Nelson Mandela, Xanana Gusmão e outros. A verdade é que não sabemos o que é um terrorista. Não é simplesmente um criminoso, porque existe uma específica componente política no crime. Também não é um revolucionário, porque existe um lado de propagandista de terror que vai para lá do comum revolucionário político.

Muitos investigadores defendem que o terrorismo é sempre originário numa entidade não-estatal, mas temo que isso seja mais resultado da dependência financeira dos centros de investigação aos subsídios estatais do que a uma posição neutra e sincera sobre o tema. É que não nos devemos esquecer que o principal cliente dos estudos sobre o terrorismo são os próprios estados e organizações supra-estatais, tais como a INTERPOL, a União Europeia, etc. Existe também uma certa ironia nesta posição, dada a origem da palavra ser precisamente o de uma política de estado, França no caso, durante o Reino do Terror, de 1793 a 1794. Em sua defesa, a ideia é que os mesmos actos, se cometidos por estados, são simplesmente crimes contra a humanidade. 

Um outro factor que devemos ter em conta, relaciona-se com as vítimas do atentado. Um ataque a uma coluna militar deve ser considerado um ataque terrorista? Não será isso um ataque de guerrilha, ou guerra assimétrica? E se este ataque for feito com um bombista suicida, como o de 1983, em Beirut, que vitimou 241 militares americanos?

E como devemos olhar para a História? Será que existe alguma diferença entre Viriato, George Washington, la Résistance française ou Bin Laden? E seria a luta contra a invasão soviética pelos Mujahedeen (do qual Bin Laden fazia parte) e apoiada pelo Ocidente, um acto de terrorismo ou só de resistência? E quando o mesmo o fez contra a invasão dos EUA e seus aliados em 2001?

A situação actual é tão confusa que na "moderada" Arábia Saudita, o ateísmo passou a ser definido como um acto de terrorismo! Por outro lado, quando um grupo é considerado como terrorista, toda a sua estrutura passa a ser tido como tal. Por esse motivo, oferecer uma ambulância a Gaza é hoje um acto de financiamento de uma organização terrorista, correndo-se riscos legais gravíssimos caso as força policiais o entendam. E, claro, uma organização colocada na lista de terrorismo não tem sequer acesso às suas contas bancárias, o que a impede de colocar o estado em tribunal para tentar limpar o seu nome.

Sem uma definição clara, toda a legislação associada ao terrorismo está propensa a ser abusada e deturpada conforme as necessidades do momento. E, finalizando, para não ser acusado de só ver o problema, aqui fica a minha definição:

Terrorismo: Acto ou ameaça de violência ilegal, pública e propagandeada sobre civis com objectivos políticos.

E sim... nesta definição, D.Afonso Henriques, George Washington e muitos, muitos outros eram ou foram terroristas. E não ilibo estados.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O Lóbi Árabe

Para quem acompanha as compras anuais de armamento por parte da Arábia Saudita e seus mais próximos aliados ou a produção diária de petróleo da região, não é difícil imaginar o poder político que estas compras e vendas de milhares de milhões de dólares necessariamente irão provocar. Nos Estados Unidos da América, os lóbis são entidades legais, aceites pelos cidadãos e que utilizam o seu poder financeiro e influência nos media para conseguirem junto do poder político os mais rentáveis negócios e vantajosa legislação para os seus associados.  

Por todos estes motivos, este livro escrito por Mitchell Bard despertou imediatamente o meu interesse. No entanto, rapidamente esse interesse acabou por se transformar numa enorme desilusão. Era inevitável que uma outra referência fosse feita a "O Lóbi de Israel", da autoria de Mearsheimer e Walt, mas não contava que o livro se resumisse a pouco mais do que uma incapaz resposta a esse livro. 

"O Lóbi Árabe, A aliança invisivel que mina os interesses da América no Médio Oriente" tem vários defeitos graves e que, na minha opinião, arruinaram o livro. Primeiro, Bard parece encontrar em praticamente todos os intervenientes do Médio Oriente um membro do lóbi Árabe. Sejam os missionários cristãos, os professores das universidades americanas de Beirute ou Cairo, as ONGs, os trabalhadores das petrolíferas, os diplomatas americanos, os Judeus não-sionistas, e até todos os países do terceiro mundo, os países da europa e a própria ONU. O autor parece ter dificuldade em compreender porque é que tantas e tão diferentes pessoas - a que ele e outros chamam de Arabistas - pareciam estar de acordo sobre os riscos da criação de Israel e, mais tarde, na posição pouco imparcial dos Estados Unidos em relação a este país. Um a um, ridiculariza cada um dos perigos levantados pelos Arabistas: os direitos das populações originais da Palestina; o risco de perder o acesso ao petróleo; retaliação económica por parte dos povos Árabes; delegitimização da posição Americana; ascensão do fundamentalismo islâmico; empurrar países para a esfera Soviética; guerras e instabilidade política. Todos estes riscos acabaram por se confirmar (embora em diferentes graus e momentos), mas não é assim que Bard vê a história.     

Na esmagadora maioria dos casos, o autor vai individualmente acusar cada uma destas pessoas de serem anti-semitas, jew haters, negadores do Holocausto ou apoiantes de terrorismo. Algo estranho até percebermos que a sua noção de anti-semitismo inclui toda e qualquer crítica ao governo de Israel ou ao Lóbi de Israel. Nas suas palavras: "[John Foster] Dules [Secretário de Estado de Eisenhower] fez também uma série de afirmações que podem ser consideradas como anti-Semitas. Por exemplo, em Fevereiro de 1957, queixou-se do enorme controlo que os Judeus têm sobre os media (...) e que a embaixada de Israel controlava o Congresso". Bard não parece compreender a diferença entre a crítica ao poder do seu lóbi e o ódio a um povo. Eu certamente não consideraria o estudo do poder do lóbi Árabe como um acto de islamofobia per se, mas seria interessante obter a sua opinião sobre o assunto. 
Sadat, Carter e Begin

Para personagens como Jimmy Carter, antigo presidente americano que conseguiu o processo de paz entre o Egipto e Israel, Mitchell Bard reserva um capítulo inteiro, afirmando que "(...) o anti-Sionismo de Carter estava implícito na sua seita fundamentalista e levou a ler a Bíblia de forma particular de forma a garantir direitos iguais para Judeus e Palestinianos". Acusações profundamente injustas para uma das pessoas que mais fez pela paz no Médio Oriente durante as últimas três décadas e que, não obstante a sua avançada idade, continua a percorrer as capitais todas da região para conseguir o que é aparentemente impossível. A paz no Egipto é fruto do seu trabalho e os prémios Nobel da Paz que Anwar Sadat e Menachem Begin receberam em 1978 bem poderiam ter sido partilhados com Carter, que de qualquer forma acabou por o receber em 2002[1].

Um segundo problema grave deste livro é a tentativa, francamente mal conseguida, de mostrar o lóbi Árabe como algo agregador e representativo da totalidade do mundo Árabe, misturando-o com a causa palestiniana, bem mais alargada em termos de opinião pública e menos financiada do que a primeira. No mínimo estamos a falar de dois lóbis diferentes. Em qualquer caso, esta ideia de um lóbi todo-poderoso não tem bases sólidas. A realidade é bastante diferente. O título está simplesmente errado e dever-se-ia chamar: o lóbi Saudita. É que durante o livro todo não ouvimos uma palavra sobre Marrocos, Argélia, Líbia, Jordânia, Iraque e tantos outros países... Árabes! E quando ouvimos é para descobrir que o "Lóbi Árabe" estava em guerra contra o Egipto de Nasser, contra o Iraque de Saddam ou a Síria de Assad. Talvez para ter um título mais interessante ou para conseguir defender essa fantasia de uma relação muito próxima entre a resistência palestiniana e o dinheiro do petróleo, Mitchell procura que o governo de 27 milhões de Sauditas seja representativo dos mais de 350 milhões de Árabes.

Por outro lado - e embora o autor não queira nem chegar perto destas questões - o Lóbi Saudita esteve ao lado do Lóbi de Israel em muitas destas matérias. Nas guerras contra Nasser (directas no caso de Israel, indirectas - via Yemen - no caso da Arábia Saudita), na confronto com o Irão pós-Revolução Islâmica, nas guerras contra o Iraque de Saddam Hussein e, acima de tudo, na espectacular artimanha que fez com que os mujahedeen repelissem o invasor Soviético. Algo que só foi possível com uma profana aliança de Israel, Arábia Saudita, Paquistão, Estados Unidos e os fundamentalistas islâmicos afegãos (mais tarde chamados de Taliban) e voluntários estrangeiros árabes (mujahedeens, no qual o jovem milionário Osama Bin Laden[2] começava a dar cartas enquanto líder e organizador de grupos de guerrilha e rotas para os combatentes árabes). Claro que na altura não ocorreria a nenhum Ocidental, Árabe ou Israelita chamar a estes de terroristas, mas isso é outra conversa...

Uma terceira questão que coloca relaciona-se com as fontes que Mitchell Bard utiliza. O inqualificável Steve Emerson[3] é uma delas, que é citado pelo autor em algumas acusações sem grande fundamento e ainda menos provas. Quanto às referências mais eruditas, utiliza as ideias de Bernard Lewis[4] como verdade absoluta mas demonstra completo desprezo por Edward Said[5], naquela que é a confirmação de uma visão dogmática sobre o Médio Oriente.

Concluindo, Mitchell deixa-se cair numa visão tendenciosa de quem claramente não é um académico neutro e desinteressado mas um assalariado de um lóbi que tem como objectivo arruinar outro. Mesmo sendo editor do jornal do poderoso lóbi Judeu da AIPAC[6][7][8], esperava muito mais. Uma pena, porque este é um assunto demasiado sério e que deveria ser estudado abertamente, de forma competente e inequivocamente isenta.

Só mesmo a influência de muitos milhões pode explicar como a Arábia Saudita é o único país do mundo onde as mulheres não podem conduzir mas que é tratado publicamente pela liderança ocidental como um país "Árabe moderado". Que bloggers como Raid Badawi sejam presos e chicoteados em praça pública no que é considerado um leal aliado do Ocidente. Que pessoas de outras religiões não posso ter os seus locais de culto ou sequer rezar na sua privacidade de forma legal. Essas leis e tradições só são aceites pela influência política ganha pelas multimilionárias vendas de petróleo e compras de armas. Cá estaremos a esperar ansiosamente pelo livro que será capaz de explicar como realmente funcionam esses círculos de interesse.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Verdadeiro Muçulmano: Quem decide?

Talvez o mais interessante fenómeno da relação entre o Ocidente e o mundo
Islâmico está na forma como os ocidentais reduzem toda a complexidade e variedade de Muçulmanos num essencialismo absoluto. Os Muçulmanos são, por definição ocidental, única e exclusivamente Muçulmanos. Nesta visão extrema, nenhuma outra variável nas suas vidas, nas suas personalidades, na sua genética ou na história da sua nação tem qualquer significado.

O recente caso do ataque terrorista do Charlie Hebdo, em Paris, permitiu-nos ver a facilidade com que os mais de mil milhões de Muçulmanos foram acusados do ataque. Os criminosos, deixaram de ser franceses para serem "nascidos em França"[1]. Pelo contrário, o polícia  Ahmed Merabet que morreu in the line of duty, enquanto protegia as instalações do jornal Charlie Hebdo, tornou-se uma espécie de "mais Francês e menos Muçulmano". Altamente inconveniente para os que gostam de uma visão maniqueísta e infantil do mundo. Tão inoportuno como os muitos milhares de muçulmanos que se juntaram às manifestações de 11 de Janeiro[2]. Nem mesmo a Bernard-Henri Lévy, famoso filósofo Francês e influente Judeu[3], conhecido crítico do islamismo militante que nesse dia era convidado de Christiane Amanpour na CNN. 

Porque é tão difícil compreender que existam no Islão milhões de pessoas com diferentes prioridades, que olham para a sua religião - e para as restantes - de diversas formas? Que existem pessoas dispostas a matar e morrer por Allah como existem milhões que acordam e adormecem a pensar no futuro dos seus filhos, na felicidade da sua família ou nas contas do supermercado? Que estaremos mais perto de os compreender se os imaginarmos que rigorosamente iguais a nós do que se os considerarmos  como radicalmente distintos? Porque motivo são os Ocidentais que julgam estar em posição de decidir quem é o "Verdadeiro Muçulmano", renegando a esmagadora maioria para uma classe lateral de "moderados", como se fossem menos Muçulmanos do que os outros.

Existem inúmeros criminosos que matam em nome do Islão, utilizando uma visão moderna e violenta desta religião. São um perigo para a humanidade e têm que ser controlados, capturados, des-radicalizados e, se não houver outra hipótese, mortos. Em nada diferente dos que há umas décadas atrás matavam em nome do comunismo ou do nazismo por toda a Europa. 

Todos sabemos como na História, os inimigos são demonizados vezes sem conta, numa tentativa de endurecer os militares e as populações de quem eles dependem em última instância. O que é estranho é que todos saibamos disso e continuemos a cair na mesma esparrela. Vezes e vezes sem conta. 

E relembro as palavras de Sting, no seu "Russians" de 1985, quando a Guerra Fria parecia que nunca iria acabar. Ainda tão actual...

Russians


In Europe and America

There's a growing feeling of hysteria

Conditioned to respond to all the threats

In the rhetorical speeches of the Soviets

Mister Khrushchev said, "We will bury you"
I don't subscribe to this point of view
It'd be such an ignorant thing to do
If the Russians love their children too

How can I save my little boy
From Oppenheimer's deadly toy?
There is no monopoly of common sense
On either side of the political fence

We share the same biology
Regardless of ideology
Believe me when I say to you
I hope the Russians love their children too

There is no historical precedent
To put the words in the mouth of the president?
There's no such thing as a winnable war
It's a lie we don't believe anymore

Mister Reagan says, "We will protect you"
I don't subscribe to this point of view
Believe me when I say to you
I hope the Russians love their children too

We share the same biology
Regardless of ideology
What might save us, me and you,
Is if the Russians love their children too